Maria Avelina Fuhro Gastal
Pode parecer futilidade, mas a frase que me causou mais impacto no início de 2019 estava inserida no meio de uma matéria na coluna policial da Zero Hora: “... a única testemunha é uma idosa de 60 anos que, por ter dificuldades para dormir, viu um carro vermelho se afastando após os disparos.” Deve ter sido no jornal do dia 2 de janeiro, pois, depois desta data, tivemos a pérola da ministra sobre meninos usarem azul e meninas, rosa. Mas isto é outro assunto que não ando tendo estômago para tratar.
Voltando à idosa, minha primeira reação foi de espanto, logo a seguir de injúria, e, aos poucos, de uma leve tristeza. Como assim, idosa? Quando me tornei idosa? Sabe aquelas palavras em neon que ficam piscando para te chamar a atenção? Pois foi assim que idosa ficou gravada no meu cérebro, pipocando, voltando, ocupando meu pensamento. E tá lá. Vocês perceberam quantas vezes eu já usei a palavra idosa em dois parágrafos? Pois é. Proporcional ao estrago que ela fez na minha percepção de mim mesma.
Impossível não relacioná-la com a finitude. Talvez este tenha sido o maior susto. Claro que a finitude nasce conosco, mas, a cada segundo, estamos mais próximos e, aos 60, temos uma infinidade deles vividos. O mais incrível é que a matéria falava do assassinato de um jovem. Ele morto, ela, de 60 anos, viva para testemunhar. Confesso que fiquei espantada com a minha reação, aceitei melhor o assassinato do que o uso da palavra para qualificar os 60 anos. Quando me acostumei com a violência?
Busquei a definição no dicionário, na Organização Mundial de Saúde e, em cada um deles, foi confirmado que sou idosa. Mas o pior é que me tornei idosa aos 60 anos não por mudanças físicas ou emocionais que me exponham a perigo para a qualidade de vida, mas sim porque nasci no Brasil. Em países como o nosso, a terceira idade começa antes. Temos pressa no envelhecimento. Nossas crianças são crianças por menos tempo; nossos jovens têm muito mais chance de morrerem cedo, principalmente se forem negros; nossos adultos adoecem mais, comem mal, trabalham em condições insalubres, ganham pouco, moram em áreas de risco e o único exercício disponível é suportar em pé o deslocamento entre a casa e o trabalho, quando conseguem um, em transportes abarrotados, sem condições de conduzir nem mesmo gado.
Antes de ser idosa, sou privilegiada. Mas isto não me consola. Mais uma vez me vejo esbofeteada por uma realidade que parece ser indestrutível. Não conseguimos garantir a todos um mínimo de dignidade. E o pior é que escolhemos, agora, um caminho que já nasce separando o nós e o eles, os que merecem e os que não fazem nada por merecer, os nossos iguais daqueles que diferem de nós. Enquanto não enxergarmos que todos merecem, que as diferenças devem ser respeitadas e que não somos nós e eles, chegar aos 60 anos será uma vitória, não da qualidade de vida, mas da sobrevivência em uma sociedade nada justa.
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