Maria Avelina Fuhro Gastal
Um pouco menos de 260km separam a cidade onde nasci daquela a que me tornei quem sou.
Não sei quantas vezes já percorri essa distância para férias, festas, confraternizações, funerais, por vontade ou por obrigação, por saudades de quem lá permanece.
Dessa vez procurei um pássaro que acompanhasse a minha viagem*. Nenhum voava acompanhando o carro, diversos revoavam em meus pensamentos.
Nos quilômetros de ida, me perco de mim. Temo não encontrar o que sou ao chegar lá. Nos quilômetros de volta, me reencontro com os pedaços que me faltavam e retorno a uma “eu” complementada com peças de um quebra-cabeças nunca finalizado.
O tanto de amor e afeto que sempre existem lá são as peças que se encaixam perfeitamente nas imagens da minha vida; cada pedaço da história delas contada por minhas tias, são aquelas peças que compõem o céu dos quebra-cabeças, parecem iguais, mas a cada uma corresponde um lugar específico, sempre difícil de encaixar.
No domingo, muito frio, pouco sol. Minha tia dormia, desci para caminhar um pouco. Saí do edifício e virei para a direita. Fui indo e me vi na esquina da rua onde minha vó materna morava quando eu era criança e no início da adolescência. Dobrei. A casa não existe mais, mas nós ainda estávamos lá. Éramos todos, sem ausências. Dali segui com meu irmão para ver a casa dos meus avós paternos, primeiro trajeto que tivemos autorização para fazer sozinhos. Eu não tinha como prosseguir sem ele. Deixei na esquina mais de 50 anos e caminhamos juntos até lá.
Há uma casa onde era a casa dos meus avós, desfigurada, desrespeitada, reformada sem respeito à harmonia ou ao mínimo bom gosto. Não cruzaríamos aquela porta. Entramos pela porta que nos acolhia, passamos ao lado da sala dourada, encontramos nosso avô na sua cadeira enrolando o fumo no cigarro de palha. Minha avó vinha da cozinha, depois de dar as últimas instruções para a Iracema. Sentamo-nos comportados. Aquela era a casa dos avós para visitarmos, a casa da avó para brincarmos tinha sido o nosso ponto de partida e ansiávamos para retornar a ela.
Na saída, traí meu irmão. Não virei para o lado que nos levaria de volta para avó, tias e primos, me despedi dele e segui sozinha. Ele não cabia naquela outra rua, naquela outra casa. Ali era um lugar só meu, o lugar onde vim à vida. O que trago das expectativas ali depositadas em mim? O quanto do meu choro, dos colos recebidos, das noites insones carrego ainda hoje? Não me sei naquele momento, com seis meses deixei tudo para trás e fui trazida para a cidade a que hoje pertenço e onde me reconheço.
Voltei para a casa da minha tia, sozinha, mas acompanhada dos muitos fragmentos de mim. Em um deles encontrei a resposta para um conflito de anos. Sempre vou a Pelotas por pouco tempo. Sinto que preciso voltar. Não é desamor, apenas preciso reorganizar o tanto de intensidade que se instala em mim.
Sou o presente acrescido da percepção do passado. Amanhã, serei o hoje acrescido do ontem. Há ausências são preenchidas pelas lembranças, há também renovação cercada por muito afeto. Tudo isso me traz a certeza da continuidade e da reconstrução da minha história.
*Referência ao livro “Devoção” - Guto Leite
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