As curvas de um retângulo


Maria Avelina Fuhro Gastal

De início, nem percebíamos a forma. Bastava uma colcha de casal, ou duas, que a cobrissem por inteiro e tapassem as laterais. Protegida, alinhava meus índios para a defesa do território. A estratégia era complicada, pois o ataque poderia vir por qualquer quadrante e o número de índios era bastante reduzido comparado à cavalaria que ficava resguardada em um forte apache com muros e torres de observação que impediam qualquer ofensiva de surpresa. Só me restava a defesa, com pouquíssimos cavalos. Minha munição, além de palitos-flecha, consistia daquelas que eu conseguia guardar depois de lançadas pelos adversários. Tarefa difícil, pois as bolinhas de gude rolavam para fora da minha proteção e sair da minha oca-defesa era um risco sem precedentes.

Talvez, ao jogar botão, já tivéssemos aprendido o nome das formas geométricas, mas não as incorporávamos ao nosso cotidiano, ficavam no plano teórico desalinhado com a realidade. As dificuldades que enfrentávamos eram de ordem prática. O meio de campo até a primeira linha de ataque tinha uma pequena diminuição na sua largura, o que nos obrigava a aumentar a habilidade de bater no jogador de forma a dar um efeito de curva na bola.

Quando investimos no ping-pong, resolvemos parte do problema. Usávamos as tábuas extensoras para transformar a mesa de 6 lugares em uma de 12. O comprimento ficava adequado para os torneios, mas as curvas permaneciam, pois, as tábuas extensoras acompanhavam o design do tampo principal. Nada que impedisse massacre entre os times que tinham o reforço dos meus pais na disputa. Por calor, preguiça, esquecimento ou desobediência nem sempre fechávamos a janela que ficava atrás de uma das extremidades da mesa. Bolinhas de ping-pong choviam do nono andar para o pátio da casa ao lado. Nunca houve reclamação. Daí nossa opção em jamais bater à porta daquela casa pedindo as bolinhas de volta. Seria confissão de culpa. Preferimos gastar boa parte de nossas mesadas na compra de um estoque de bolinhas.

Não sei porque alguém projeta uma mesa retangular e na metade dos lados mais compridos resolve fazer uma leve reentrância tornando curvo o que deveria ser reto. Estilo, moda, inovação ou pura invencionice. Eles inventaram, nós reinventamos. Aquela mesa acompanhou as brincadeiras com o meu irmão, incorporou amigos e permitiu a presença dos meus pais conosco em plena adolescência. Embaixo dela, índios foram dizimados em massacres com munições de vários tamanhos e cores, em cima dela, times foram goleados, jogadores expulsos. Bolinhas cruzaram a sala em jogadas foguetes, saques vigorosos. Rolhas queimadas repousaram esperando o momento de marcar o rosto do dorminhoco entre nós.

Espaço kids não havia sido inventado, playground era em uma praça próxima e nem sempre tínhamos alguém para nos levar, videogame, internet, celular, streaming só em ficção científica, televisão em preto e branco, com chuvisco e horário de programação reduzido. Nada tínhamos a não ser a nossa capacidade de inventar distrações. A rua não nos era permitida, não tínhamos pátio, morávamos em plena Rua dos Andradas, em um apartamento de amplas peças, um só banheiro e dois vastos corredores. Nele cabiam nossos amigos, primos, hóspedes. O que faltava em estrutura, sobrava em acolhimento.

Saudades de casa cheia, de visitas inesperadas, de criatividade na diversão, de encontros sem telas, de conversas e risadas sem a interrupção por um aviso de chegada de mensagem.

Saudades de uma vida mais simples. De uma vida com mais afeto, trocas e convivência.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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