Bocado do quê?


Maria Avelina Fuhro Gastal

Se para fazer um samba bom é preciso um bocado de tristeza, o que precisamos para fazer um texto bom?

Tristezas, temos de sobra. Ela está nas ruas, nas esquinas, nos noticiários, ocupando o Planalto Central e contaminando todo o país. Se o texto falar só delas, ignora a esperança. Se não falar nelas, compactua com o inaceitável.

Hoje, não quero escrever tristezas. Quero olhar para o mundo e ver além do que eu enxergo. Mais do que dos olhos, preciso das sensações, dos sentimentos. Não quero descrever a natureza nem relatar encontros e desencontros. Quero no cotidiano enxergar o essencial. Já que ele é “invisível aos olhos”, me desarmo das certezas. Para as dúvidas, garimpo palavras, subverto sentidos.

Escrever pode ser boiar. Mas, também, mergulhar. Mergulhar até perder o fôlego. Redescobrir a delícia em aspirar o ar. Perceber no banal a força que ignoramos. Não desejar o excepcional, descuidando do trivial. O trivial é a vida, sem ela, não há nada. E se tudo rima, faça-se uma canção, uma cantiga ou uma poesia.

De que adiantam as cores da estação, os sorrisos desmascarados, os abraços libertados se mantivermos nosso corpo e vontades aprisionados? Se tudo ainda não passou, melhorou. Se o que temos não é o normal que conhecíamos, façamos o que for possível para amenizar nossa solidão.

Escrever é um ato solitário, povoado por vozes, memórias, prazeres e incômodos. Cansei da solidão. Se por dois anos ela me manteve viva, agora, me sufoca. Quero a vida além da minha janela. Quero vozes, borburinhos, risadas. Quero pessoas, sorrisos, abraços e toques.

Tomada de decepções, ausências e saudades, abro espaço para o inesperado, para a possibilidade do reencontro e de novos encontros. Quero um bocado de vida. Muita vida. Sem ela, não terei o que escrever. Amarga, guardarei para mim as dores que enxergo no mundo para não nutrir a dor dos que me leem.

Bocado de alegrias, de tristezas, de decepções, de desacertos, de conquistas, de derrotas, de vitórias. Bocado de outros.

Bocado de tudo que significa vida. Dele virá a escrita e a resistência. Persistir, com mais leveza.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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