Maria Avelina Fuhro Gastal
Em um lápis imaginário, faço de memórias o grafite. No mapa da cidade circundo os bairros dos meus caminhos, se não com os pés, com o traçado da minha trajetória.
Começo pelo Centro e avanço para o Bonfim, dobro em direção à Cidade Baixa, prossigo até o Menino Deus e, dali, alcanço a Tristeza.
Minha Porto Alegre acontece nas ruas, nos parques, nas esquinas, na diversidade, no encontro das diferenças. A cidade dos clubes e condomínios segrega, a minha, abarca.
A cidade é muito maior do que minhas memórias. Há cantos e lugares onde jamais pisei, enquanto existem outros por onde apenas passei. Neles, memória de outros, fazendo com que cada espaço tenha o significado dado pelas pessoas que ali vivem.
A Porto Alegre do meu querer ocupa cartões postais, mas eles só oferecem imagens, ignoram vivências e descobertas. Na experiência não há filtros. Ignoro os cartões, mergulho no viver.
Do Centro, trago uma vida. Ali cresci. Por aquelas ruas me aventurei. Larguei a mão dos meus pais e caminhei por conta própria. Cheguei no colo, dei os primeiros passos, comecei a falar, aprendi a ler e a escrever, construí amizades, descobri o amor, dei o primeiro beijo, enfrentei uma grande dor. Aos 17 anos, deixei de morar no Centro, mas muito de mim ainda permanece lá.
Do Bonfim, o transgeracional. Na imensidão do Parque Farroupilha corri, pedalei, joguei futebol com o meu filho, comprei roupa de Barbie para a minha filha e, hoje, compro para a minha neta, e, com certeza, jogarei bola com o meu neto. No bairro, há vida nas ruas e um pouco das nossas desfila por lá.
Da Cidade Baixa, a certeza de que um dia poderemos viver em um país melhor. Nela, exaltei estrelas, acreditei em mudanças.
Do Menino Deus, a construção do que sou. Cheguei aos 17 anos e ainda permaneço. De adolescente à adulta, de jovem à velha. Aqui me formei, me casei, fui mãe, me separei, fui profissional, sou aposentada, comecei a escrever, fui vó, publiquei meus livros. Aqui também perdi pai, mãe e irmão. Nesse bairro, me desconstruí, me reergui e me descubro a cada dia.
Da Tristeza, a memória de nossa totalidade. Hoje, sou mãe, avó, tia, cunhada. Morri como filha e irmã. Só revivo nas lembranças.
Não nasci aqui, mas “Porto Alegre me tem”; me tem, mas não vivo em paz. Em tudo que amo, há espaço de injustiça e desigualdade. Os parques e ruas que me encantam alojam desabrigados e desassistidos. A brisa que vem do Guaíba, castiga quem vive nas ruas. Os matizes do pôr-do-sol que, por tantos anos, tingiram de lilás a minha sala, são o prenúncio de mais uma noite em que o único cobertor são as estrelas distantes.
É uma cidade que se vê branca e culta, enquanto empurra negros, indígenas e pobres para a invisibilidade, apagando culturas e histórias.
Porto Alegre tem defeitos, inúmeros, tem vergonhas, incontáveis, apesar disso, aqui é o meu lugar. Não importa aonde eu vá, avistar a Cidade, por céu ou por terra, me tranquiliza, mesmo que eu saiba haver muito por mudar.
A vida acontece nas cidades, a nossa, em Porto Alegre há 250 anos. A Cidade está em nós, mas nós estamos nela, também. O que ela é e será depende muito do que somos.
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