Teimosia


Maria Avelina Fuhro Gastal

Sempre foi dito que o ano começa em março, ou depois de carnaval. Por confluência de datas, teremos apenas uma chance para dar novo início ao ano que em dois meses já mostrou a que veio.

O que deveria ser história ressurge como ameaça, aquilo que deveria ter sido superado permanece como marca de um presente que carrega todas as atrocidades que imaginávamos impossíveis de serem repetidas.

Apesar dos avanços tecnológicos, involuímos. Há entre nós enorme espaço para o autoritarismo, para o preconceito, para a agressão.

Não é a resiliência que nos mantém vivos. É a teimosia. Teimamos em sobreviver à Covid, ao negacionismo, às ameaças à democracia e ao risco de um conflito mundial.

Teimosos, acordamos todos os dias para cumprir as obrigações, seguir a rotina. Fazemos exercícios, estudamos, lemos, estabelecemos metas, fazemos planos, sonhamos mesmo que as notícias nos bombardeiem. Admiramos as cores do dia, a exuberância da natureza, o espetáculo do pôr-do-sol, apesar das imagens de guerra. Um gesto de carinho nos toca, insignificante frente a tantos mal tratos sofridos por quem está na rua. O riso e as descobertas das crianças nos acalmam, até que enxerguemos as que estão nas sinaleiras ou embaixo dos pontilhões.

Vamos buscando pontas de alívio. Contamos os dias para o fim de vários pesadelos. Alguns com data marcada para que possam terminar, outros, uma projeção de esperança.

Eu resolvi plantar. Flores para trazer cor em meio aos tantos verdes que tenho pela casa. Pode parecer banal, mas, para mim, um ato supremo de teimosia. Nunca gostei de mexer na terra, nada do que eu planto dá. Comprei terra, seixos, flores resistentes, segui as orientações da floricultura e plantei em onze vasinhos, há duas semanas. Dez passam bem, uma requer cuidados. Talvez seja mais frágil, talvez mais sensível. O cuidado depende do reconhecimento das diferenças e especificidades. Não sei se conseguirei salvá-la, mas enquanto ela demonstrar teimosia em permanecer viva, farei o que for possível.

Gosto, ao chegar da caminhada, olhar para cima e ver a minha janela exibindo-se em cores. Elas não mudam o mundo, mas me ajudam a continuar teimando.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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