Sombras


Maria Avelina Fuhro Gastal


Buscou o ângulo perfeito para o reflexo de sombras na parede. Colocou a mão direita sob a esquerda, unindo palma com dorso, elevou o dedo médio da mão que estava por baixo no espaço entre os dedos médio e anelar da mão que estava por cima, esticou os polegares para as laterais, fez uma leve curvatura no dorso da mão esquerda. Nada. Nenhuma imagem que pudesse imitar um pássaro, um animal qualquer. Mudou a posição das mãos e dos dedos. O resultado foi o mesmo, fracasso. Sempre parecera tão fácil. Pensou em buscar demonstrações na Internet. Talvez mais tarde. Por hoje, cansou das telas.

Retoma a leitura do livro. Precisa retornar três páginas. Perdeu o fio da meada. Lembra do tricô abandonado. Larga o livro, pega as agulhas. Nelas nunca se perde, não importa há quanto tempo não se cruzem.

Cantarola Fascinação. Ou melhor, sussurra. Talvez nem isso. A letra da canção desfila em sua mente e ela canta, em silêncio. Já cantou essa música quase gritando. Naquela época, era a única forma de escutar sua própria voz em meio à balbúrdia dos filhos pequenos.

Correrias pela casa, birras, brincadeiras, queixas, choros, guerra de quereres. A imposição de quietude chegava com o final da tarde, antes esbanjavam vida. Se então ansiava por algum silêncio, hoje sente a falta de vozes. Passa o dia com barulhos. Barulho de gente falando na televisão, no rádio. Nenhuma possibilidade de troca. Só ouve, ouve, ouve, até que desliga a audição. Os diálogos, trava com si mesma ao longo do dia.

Seu assunto preferido é introduzir novidades à rotina. Há anos a semana tem roteiro. O de amanhã, quinta-feira, começa com a troca dos lençóis e das toalhas. Depois do aspirador de pó nos tapetes da sala e do escritório, a ida à feira. Na volta, higienização de frutas, verduras e legumes. O almoço é mais simples já que a manhã fica curta e ele deve ser servido ao meio-dia, em ponto. Arroz, bife acebolado, salada com legumes frescos e recém lavados. O ovo frito deixou de ser opção com o avançar da idade. Talvez amanhã limpe os rejuntes do lavabo. Não define as possibilidades com antecedência para que não virem obrigação, apenas pensa nelas.

A vontade de comer camarão teima em voltar. Há quanto tempo não come? Em casa, há mais de quarenta anos. Opção proibida pelo cheiro que espalha pelo ar e pela quantidade de moscas que atrai. Não mais do que qualquer peixe, cardápio dos sábados. Eles liberados, camarão proibido. Desistiu de entender as razões, apenas segue a previsão para as refeições diárias. Melhor apenas fazer.

Se há algo para fazer neste exato momento, é regar as plantas. Hoje, só as da sacada. Se as do interior ficaram protegidas do calor, perderam a oportunidade de se exibirem para um dia de céu azul que foi ao encontro da noite tingindo-se de tons de rosa e de violeta. A água é despejada em cada vaso sem movimentos bruscos. As plantas são seus atuais bebês. Só não fala com elas porque já não precisa de mais conversas sem respostas. O diálogo se dá nos cuidados, na poda, na terra revirada, na limpeza das folhas, no encantamento com cada novo broto.

Talvez o ruído distante das ruas ou a constância de seus diálogos internos a tenham impedido de ouvir a porta do escritório abrindo, os passos se aproximando da sacada, o pigarro persistente. Sobressaltou-se quando ouviu seu nome. Virou-se com o regador na mão, tentando descobrir o que teria esquecido.

─ Norma, estou indo me deitar. Se não vens agora, dorme no outro quarto. Não quero ser acordado pelos teus barulhos.


Conto publicado na Revista da Casamundi em dezembro de 2021

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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