Maria Avelina Fuhro Gastal
Não temos como ficar indiferentes à destruição causada por tsunamis, enchentes, deslizamentos de terra provocados pela chuva, rompimento de barragens. As marcas da violência das águas são inegáveis. Ficamos apreensivos quando a possibilidade de salvamento dos atingidos se esvai. Somos tomados pela emoção a cada sucesso de resgate e a cada encontro de vítimas fatais. A tragédia é pública, nos atinge mesmo a quilômetros de distância. Reconhecemos nela a finitude da vida. À dor dos atingidos soma-se a comoção de todos nós.
O pingo constante de uma torneira também é devastador para quem o escuta sem cessar e deixa marcas na superfície atingida por ele. Altera até mesmo a estrutura de uma rocha. Destrói aos poucos, com perseverança. Quem está de passagem pode sentir algum incômodo com a situação. Quem convive com ela, inventa maneiras para tolerar, perde a tranquilidade, o sono, se sente enlouquecer. O sofrimento causado pelo pingar constante é individual, não encontra no outro compaixão.
Hematomas pelo corpo, dentes quebrados, pele queimada, ossos fraturados são tsunamis, enchentes, deslizamentos de terra, rompimentos de barragens. Violência denunciada pelas evidências. Não há como não ver nem como não se comover.
Palavras maldosas, olhares incriminadores, suspeitas infundadas, acusações descabidas, desqualificação constante são pingos. Um incômodo para quem assiste, uma degradação para quem sofre.
A série Maid (Netflix) coloca em nossas salas a violência que não vemos, não percebemos, não reconhecemos. A violência que não é escancarada, a violência muitas vezes vista como mau gênio, como pavio curto, como desentendimento conjugal, como consequência de problemas financeiros, como stress, como efeito passageiro do álcool ou outras drogas.
Na constância, a pessoa alvo diminui, se encolhe, se vê incapaz, se acredita um nada, duvida de si mesma, perde a habilidade de fazer escolhas sensatas. Na série, a protagonista se vê no fundo de um poço, se sente sugada pelo sofá. Poderia se perceber um rato, se enxergar escorrendo pelo ralo. Não há como se ver inteira quando cada um dos seus pedaços foi alvejado, triturado, esmagado, sempre com sutileza, sempre com insistência.
Precisamos reconhecer o que há de violento em nós, em nossa sociedade, nas nossas relações. Precisamos admitir quando sofremos violência sem marcas visíveis, mas não menos profundas. As cicatrizes permanecem, mas podemos impedir que se expandam, e devemos lutar para que não sejam as marcas do que somos.
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