Cheiro de rato morto


Maria Avelina Fuhro Gastal

Uma página em branco traz o mesmo significado do ideograma para a palavra crise: oportunidade e perigo.

Nela cabem todas as histórias criadas na cabeça de quem escreve, cada detalhe do cotidiano, todos os sentimentos represados, as vontades negadas. As personagens criadas conduzem a ação, a persona fala por nós, construímos aquilo que não é a verdade, mas a ela se assemelha.

Encontrar o ritmo, a cadência do texto, a palavra exata, eliminar excessos, ser objetivo e claro sem ser banal e clichê, escolher a voz do narrador, situar o leitor na trama sem fazer dele uma marionete são alguns dos problemas enfrentados no desenvolvimento de qualquer texto literário.

Se na página em branco podemos criar uma narrativa de qualidade, nossas escolhas podem colocar em risco esse objetivo.

Atualmente, acrescento aos riscos aquilo que denominei “efeito cheiro de rato morto”.

No final da década de oitenta, a creche para filhos de servidores da Assembleia Legislativa do RS sofreu uma infestação de ratos. Foi fechada para desratização, crianças e funcionários afastados. Na época eu ocupava o cargo de coordenadora, tive que permanecer acompanhando o trabalho de exterminação dos malditos roedores. Era uma casa velha, cheia de recortes nas paredes. Por vezes, encontrar o rato morto era uma tarefa difícil. O cheiro denunciava a possível localização do cadáver. Embora não coubesse a mim retirá-lo, não havia como ignorar o odor.

Ao chegar em casa, mesmo após o banho, eu ainda sentia aquele cheiro insuportável. Sabia que não estava em mim, mas na lembrança que permanecia pela intensidade daqueles momentos. Até hoje sou capaz de perceber no meu corpo as reações que a simples memória daquela situação me traz.

Enfrentar uma página em branco, hoje, exige um esforço enorme para não permitir que o cheiro de rato morto invada os textos. A podridão está no cotidiano. Muitos de nós estamos nauseados enquanto outros dela se alimentam. Se sucumbimos, obedeceremos à voz de destruição deles, se calamos, corremos o risco de nos acostumarmos com o inaceitável.

É bom que fedam para que possamos identificá-los e localizá-los, não há perfume ou embalagem capazes de mantê-los ocultos. A podridão deles é exalada em atos e palavras.

Não podemos permitir que impregnem nossa existência. Apesar deles, o ciclo da vida continua. As flores estão se abrindo, os sabiás cantando, o dia ganhando mais horas de sol. A natureza nos mostra a força de resistir em meio ao asfalto e à poluição.

Sobreviveremos aos ratos e voltaremos a sentir o cheiro de terra molhada, de flores. A resistência na páginas em branco terá forma de denúncia e repúdio, mas, também, de esperança, respeito, igualdade, justiça e amor.




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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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