Não morro só pela boca


Maria Avelina Fuhro Gastal

Há quem morra pela boca. Para meu azar, além de pela boca, morro pela escrita.

Na Coletânea Por Cima é Millôr, 2019, tenho um texto com o título Vexame. Na quinta-feira passada ele voltou para a minha vida na forma de uma queda, sentada, no pátio do Sabor de Luna, no meio de uma tarde de sol, rodeada de amigos.

Assim, do nada, me desequilibrei e caí de bunda. Por sorte, controlei a queda, não a vergonha. Levantei o mais rápido que consegui, bati com as mãos nas calças para afugentar os resquícios do vexame, e saí pisando firme, tipo sou mais eu, apesar dos meus micos constantes.

No fato tem algo de profecia. A dona do Sabor de Luna também é autora de diversos textos da Coletânea. Há poucos dias ela publicou no Facebook um texto sobre micos, comentei com total identificação, ela respondeu que os meus pareciam imbatíveis. Serão? Ou nós temos a coragem de assumir nossos papelões?

Eu teria material para muitas crônicas. Talvez uma série, ou livro, com o título “Sem noção”. Ser essa a forma como minha filha se refere a mim indica o tanto de histórias que eu teria para contar. Não estaria só, pois tenho amigas parceiras de vexame. Santa Maria que o diga. Sosseguem, se um dia contar algo, ficcionalizo, só nós saberemos do que se trata.

Papelão, mico, piti, vergonha são graduações do vexame. Se fossem acadêmicos, eu estaria no pós-doc.

Aqui embaixo, transcrevo o texto da coletânea.

Se vou morrer pela escrita, escreverei sobre viagens, amores, descobertas, rios de dinheiro, derrota do perverso nas eleições, seguida de prisão pelos crimes cometidos, tudo com base em um processo legal justo. Vai que dá certo.

Vexame

Vexame só é vergonhoso quando nosso; dos outros nos diverte. Podemos ter, no máximo, um certo desconforto, um tiquinho de vergonha alheia, mas na primeira oportunidade, vamos rir até não poder mais do vexame alheio. Não do nosso. Quando rimos de nós mesmos, foi no máximo um piti, sem consequências, passageiro, quase imperceptível, nunca um vexame com todas as letras e propriedades. Vexame é para ficar na história, fazer com que a gente deseje apagar aquele dia da mente dos outros. Da nossa é impossível. Fica ali, na moita, pronto para nos fazer lembrar do papelão. Piti a gente esquece, ou até repete porque tem lá seu charme. Mas vexame é descontrole. É dar ao outro o poder de nos abalar. E aos outros a oportunidade de rir de nós. Assim como rimos do vexame deles. Sempre ridículo, desproporcional, inconcebível, inadequado. O deles, não o nosso. Para o nosso encontramos desculpas e razões suficientes. Quem nunca deu vexame? Você aí, lendo com este sorriso atravessado, já deve ter dado vários. Ah, não? Só riu do dos outros? Além de dar vexame, sim, você é mentiroso. Mente pra si mesmo porque morre de vergonha. Confessa. Dar vexame é da vida, e por isso ela não é justa. Só os outros deveriam estar sujeitos a esse descalabro. Vexame veio para ficar e para se mostrar. Sem plateia, ou pelo menos mais um, ele não acontece. Daí é só sofrimento vazio, sem chance de espetáculo. Então, obedeça. Ignore o disfarce da grafia e da concordância e, ao menor sinal de uma cena promissora, vê- chame os outros para garantir a diversão.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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