Tobogã


Maria Avelina Fuhro Gastal

Eu era um pouco mais do que uma criança quando fui a um jogo de futebol pela primeira vez. Não tenho certeza de ter havido uma outra ida, na minha lembrança, não. Programa familiar, pai e irmão colorados doentes, Beira Rio inaugurado há poucos anos, fomos. Não tenho ideia de que jogo era. A mim só interessava a promessa de poder brincar, no final da partida, no tobogã que tinha ao lado do estádio.

Durante o jogo, me desliguei. Teve gol, não vi. Esperei pelo repeteco que, claro, não aconteceu. No segundo tempo, levei vários minutos para me acostumar com a mudança do lado dos times em campo. Estava ali, pensando no lado de fora, em deslizar pelo tobogã quantas vezes fosse permitido. Adorava a sensação de descer com o vento no rosto, ganhar velocidade, abrir os braços para me sentir voar. Não importava o quanto de escadas eu tinha que subir para ter alguns momentos daquela sensação de liberdade.

Enquanto meu maior desejo era brincar como criança, voar como passarinho, milhares eram torturados nos porões da ditadura.

Desde 2015 tenho a sensação de estar assistindo a um jogo de regras abolidas. Vale chute, mentira, dentada, cotovelada, deslealdade, dedo no olho, compra de resultado. Espanto-me com a torcida organizada que vandaliza o país e as instituições democráticas. O jogo violento nos paralisa. Não consigo absorver mudança de lado dos times, ainda mais quando um deles desrespeita todas as regras e só joga para a torcida.

Por vezes, recolho-me ao “vale a pena ver de novo” e revisito um passado recente, cheio de falhas, mas que a busca por um país mais igualitário era legítima e não classificada como comunista. Sintonizando o momento atual, vejo um povo perdendo de goleada com jogada armada por ele mesmo.

Um tobogã não bastaria para me trazer leveza, mas, talvez, me fizesse recordar como é a sensação de bem-estar. Cinco décadas me separam daquela noite, meio século em que aprendi que nenhum jogo está ganho. Há sempre adversários, alguns, desumanos. Vemos pelo mundo ideias preconceituosas, discursos de ódio, ode à supremacia branca ganhando força. Fanatismo religioso apagando vidas. O Talibã voltando ao poder no Afeganistão. O Brasil voltando ao mapa da fome. Democracias ameaçadas, direitos sociais sendo revogados. Negação da Ciência, agressões ao meio ambiente em nome do capital, desmantelamento das universidades. Não bastassem esses absurdos, ainda tenho que enfrentar a decepção com pessoas da minha vida que defendem o atual estado das coisas, negam ter havido ditadura, enaltecem um perverso no poder.

Hoje sei que a descida leve e divertida no tobogã é precedida de inúmeros degraus até atingir o topo. Deslizar é fácil e prazeroso, no entanto, só é possível depois de vencida a subida. A sensação de bem-estar pode ser fugaz, mas inesquecível. Não importa quantas vezes tenhamos que vencer degraus, desistir não pode ser opção se quisermos ser livres.




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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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