Cada 24 horas


Maria Avelina Fuhro Gastal

“Mais vinte quatro horas”. Esse lema entrou na minha família quando eu tinha 17 anos, através do ingresso do meu pai nos Alcoólatras Anônimos. Ao todo foram 17 anos de sobriedade, até a morte dele. Ele usou cada hora desse intervalo de tempo para reconstruir laços afetivos com irmãos, sobrinhos, filhos e com a minha mãe. Os meus filhos, únicos netos com uma convivência maior com ele, conheceram um avô sóbrio, dedicado, disposto a montar circos, demarcar campo de futebol no pátio, dar caldinho na piscina e alimentar bonecas por horas a fio.

Não sei quantas vezes ao longo dos anos ele teve vontade de beber nem quantas vezes se sentiu cansado de lutar contra a oferta de bebidas, a possibilidade de encontro com os companheiros de trago. Os dezessete anos de sobriedade foram construídos e mantidos por superações diárias, imperceptíveis para quem não enfrenta os desafios de um comportamento aditivo.

Nós estamos há um ano e quatro meses convivendo com o medo. As vitórias e derrotas se dão nas vinte e quatro horas dos nossos dias. Cansaço, desesperança, temor, resiliência, garra, força se intercalam e prosseguimos, lambendo feridas, acariciando lembranças, sufocando saudades, agradecendo por cada minuto que acumulamos em uma existência sem contágio, nosso ou de nossos afetos, chorando por quem se vê ameaçado ou abatido pelo vírus.

De sexta para sábado passei 24 horas desconfortáveis. A segunda dose da vacina me provocou uma reação muito mais forte do que a primeira. Febre, dor de cabeça, dor em todos os músculos do corpo, nas juntas dos dedos das mãos e dos pés, até a curvatura da sola dos pés doía, um cansaço absurdo, desânimo total. Mas eu estava na minha casa, aninhada na minha cama ou sofá, monitorada pelos meus filhos, incansáveis em saber se eu precisava de algo, trazendo água com gás, verduras e legumes, insistindo para que eu me alimentasse.

Impossível não pensar na situação das pessoas que testam positivo para Covid. Eu sabia que a tendência era melhorar logo, quem está com sintomas fica tomado pela incerteza. Meu desconforto era um passo da imunização, o dos positivos pode ser uma etapa única da doença, mas, também, um passo para a internação, para a intubação, para a permanência de sequelas ou para o óbito.

No sábado pela manhã, a motociata do perverso passou a uma quadra da minha casa. Misturado ao som das motos, as batidas de panela. Eu sem condições de bater e tentando entender o que há para celebrar e a motivação para provocar aglomeração durante uma pandemia. Mais tarde, pelas redes sociais, soube que os participantes da motociata faziam símbolo de arma com os dedos.

Nas 24 horas em quem eu lidava com a reação à vacina, 1172 pessoas morreram por Covid no Brasil, totalizando 532.949 óbitos. O símbolo da campanha deixou de ser promessa para tornar-se meta cumprida. Foram confirmados 45.814 novos casos. Mesmo que haja queda no número móvel de casos, estamos muito longe de haver motivos para comemoração, muito menos para motociata de quem deveria, no mínimo, ser solidário, já que não faz nenhuma questão de agir, não só à situação de quem está enfrentando a doença, mas também às pessoas em situação de total desamparo socioeconômico.

Bater panela ou se negar a cozinhar deu cadeia, criticar o (des)governo é ato comunista. Há 30 meses vivemos o absurdo. Não temos 24 horas sem uma ofensa às minorias, sem um ataque às instituições democráticas, sem ameaça à democracia, sem agressões vulgares proferidas por quem deveria representar o Estado. Não confundam espontaneidade com despreparo, com falta de equilíbrio, de educação, de sentimentos humanitários, com mínimo respeito pela vida, além da sua própria.

Meu pai usou cada 24 horas de seus 17 anos de sobriedade para fazer diferença, construir uma história de superação e fazer de nós protagonistas dela. O perverso faz o diferente através da destruição, do desmatamento, das queimadas, da intolerância, da fome, da ameaça, até o absurdo de simular falta de ar em uma live.

Mais 24 horas para todos aqueles que não desistem de acreditar que podemos mudar nosso futuro, agindo a cada dia, reconhecendo o tanto de fascistas que há entre nós. Se meu pai pode avançar ao assumir o álcool como seu inimigo, temos, agora, a vantagem de reconhecer contra quem lutamos,

Deixe um recado para a autora

voltar

Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

Clique aqui para seguir esta escritora


Pageviews desde agosto de 2020: 248269

Site desenvolvido pela Editora Metamorfose