Maria Avelina Fuhro Gastal
Em 2018, assisti em Nova York à peça Sleep no more. O verbo assistir é inadequado, pois se trata de teatro imersivo, então, vivenciei a experiência de estar presente em uma das exibições.
Não há ingressos para deixar na portaria. Na compra, seu nome é incluído em uma lista para posterior check in. Você não vai ao teatro, não se senta na plateia nem mesmo há palco. Tudo acontece em um prédio de um hotel desativado no bairro de Chelsea.
Ao fazer o check in, você recebe uma carta com um número ou figura. Deve deixar bolsa, celular, máquina fotográfica, casaco. É proibido gravar, filmar ou fotografar. Recebe uma máscara branca que cobre todo o seu rosto e deve ser usada durante toda e experiência que dura cerca de três horas.
Você entra no lobby do hotel onde funciona um bar com música ao vivo. Uma pequena banda de jazz toca ao estilo dos bares underground de Nova York. Mestre de cerimônia, garçons, músicos, dançarinas e atores usam a mesma máscara que você na cor preta.
Aos poucos vão sendo organizados grupos a partir da carta recebida. Antes de entrar em um elevador antigo, os membros do grupo recebem instruções precisas sobre a conduta a partir dali: silêncio absoluto, você pode escolher em que andar descerá, quais aposentos visitará, quanto tempo permanecerá em cada um, pode interagir com os atores em silêncio e sem tocá-los. Como os grupos são definidos pelas cartas, eu e a minha filha ficamos em grupos diferentes. Já tínhamos sido orientadas por um amigo para nos separarmos durante a experiência. A carta selou a separação.
Sleep no more é baseado em Macbteh de Shakespeare. Nos diversos aposentos do hotel há cenas adaptadas por releitura da peça. O investimento é na ação, ambientação, trilha sonora, carga dramática. Não há falas o que facilita a vivência para quem não domina o idioma. Os atores circulam pelas diversas cenas, você pode escolher acompanhá-los ou mudar de aposento a qualquer momento.
Alguns ambientes não têm atores, mas são carregados de elementos metafóricos ligados à história contada. Você pode abrir armários, folhear livros, bisbilhotar gavetas, até mesmo comer as guloseimas dos cenários.
Experimentei sensações de temor, ansiedade, curiosidade, repulsa, encantamento. Por algumas cenas fui envolvida e permaneci até que os atores, sem aviso prévio, saíssem correndo do aposento e se dispersassem pelo hotel. Nesse momento, escolhe-se seguir um deles ou buscar uma outra experiência de imersão.
No final, todos se reencontram no lobby do hotel onde você pode permanecer. Tomar drinks, ouvir música ou decidir partir.
Já li comentários de que cada um escolhe cenas e aposentos de acordo com as questões inconscientes que são afloradas pela vivência. Eu e minha filha estivemos apenas em duas cenas em comum. Conversando, percebemos o quanto de nós estava em cada uma das escolhas que fizemos ao longo das três horas em que estivemos afastadas, em meio a estranhos, em um hotel desativado, adaptado a toda dramaticidade e violência da peça de Shakespeare, em um país que não era o nosso.
A experiência é instigante. Se começamos querendo que terminasse logo, ao final queríamos recomeçar.
Jamais pensei que viveria no Brasil a releitura de uma obra com a mesma intensidade.
Em 2020 começaram os ensaios. A obra escolhida foi A peste, de Albert Camus. A opção para o título em inglês, No longer alive, considerou a familiaridade que temos com a língua, tão difundida em outdoors (billboard, na realidade), em vitrines de lojas (sale, black Friday, gifts), em itens de cardápios ou nomes de estabelecimentos (Steak House, Baby dream). As chances de sucesso seriam aumentadas.
O espetáculo foi criando forma ao longo do ano passado. Decidiram por trazer ao texto de caráter existencialista, elementos do realismo fantástico. A partir de dezembro, houve maciça propaganda nos meios de comunicação. A grande estreia deu-se no início de 2021, em Manaus. Sucesso absoluto, em três meses percorreu o país e, hoje, tem em Porto Alegre seu momento apoteótico, com grande repercussão na mídia mundial.
Algumas adaptações à forma de exibição foram necessárias para atender às exigências do texto e da performance, sempre adequando à realidade brasileira.
Um hotel, mesmo que desativado, não atenderia à necessidade de espaço para algumas cenas. Optaram por matadouros.
Como em Nova York, não há impressão de ingresso. Seu nome também consta de uma lista, não para cheque in, mas para verificação de antecedentes. Identificado, em vez de uma carta, você é marcado na mão. A marca é feita por um ferro que imita aquele de marcação de gado, usando tinta de carimbo no lugar de brasa. Os símbolos são: figura de um bombom da Kopenhagen, arminha, suástica, o número 17, gravuras com os rostos em miniatura de Flordelis, Queiroz, Trump ou Ustra, chibata, uma figura em forma de selo comemorativo ao golpe militar de 64.
Não pode ser fotografado nem filmado. Os objetos de uso pessoal devem ser entregues na central de fiscalização e avaliação. Negros, mulheres, barbudos, pessoas com trejeitos inadequados ao gênero de nascimento, portadores de livros, professores, cientistas recebem mordaças que devem ser mantidas durante todo o espetáculo. Os demais são agrupados em cangas de seis componentes. A regra do silêncio é óbvia para os amordaçados. O grupo da canga recebe orientação para gritar a palavra “mito” toda vez que sentirem um pequeno choque no pescoço. Ninguém usa máscaras, com exceção dos organizadores e atores que exibem uma máscara em verde e amarelo que cobrem todo o rosto.
A cada grupo formado são passadas as seguintes regras: não pode ser dirigida nenhuma palavra ao elenco nem feito nenhum contato corporal. Excetuam-se dessa proibição as mulheres que podem ser insultadas, apalpadas e, sempre que merecerem, esbofeteadas. Violação e assassinato não são permitidos em meio ao público.
Dado ao tema sombrio da obra escolhida, as cenas são fortes. Aos humanos, é aconselhada cautela. Algumas delas já chegaram ao conhecimento do grande público. A partir daqui o texto dá spoiler e pode causar sofrimento.
Nem todas as cenas são conhecidas, muitas ainda estão em processo de formatação. Selecionamos algumas das que têm sido veiculadas pela mídia.
Cena 1: em um canto de um dos matadouros, há uma cela de tamanho minúsculo, sem água, alimento ou refrigeração, onde espremem-se diversos profissionais de branco, em meio a aparelhos de pesquisa científica, tubos de oxigênio vazios, com paredes cobertas de gráficos, tabelas e fórmulas. Uma proteção de acrílico impede a passagem de som da cela para fora dela. Vê-se as pessoas gritando, os lábios se movendo, mas não se escuta o que é dito. Todos estão descabelados, com grandes olheiras e aparência de loucos. Alguns choram. No amplo espaço ao redor, refrigerado, com confortáveis poltronas, reúne-se um grupo de homens de ternos, bem barbeados, abraçados a sacos de dinheiro. Estão de costas para os loucos da cela.
Cena 2: cena em área externa. Um retângulo de grandes dimensões ocupado por carros novos e camionetes imponentes com ocupantes bem trajados, cabelos escovados e sedosos e óculos de sol Louis Vuitton, em um constante buzinaço. Paralelo a eles, uma fila de ônibus de transporte público apinhados de gente, transpirando, espirrando e tossindo.
Cena 3: nos deslocamentos entre as áreas de encenação cobertas e as descobertas, homens, mulheres e crianças assam ratos em churrasqueiras improvisadas.
Cena 4: em um programa de auditório, o animador provoca a plateia ao estilo “Quem quer dinheiro?” do Sílvio Santos. Usa uma roupa escura, com uma faixa atravessada sobre o paletó. Ri de uma forma debochada e provoca o público que o assiste. A plateia é fria, não reage aos estímulos. Todos têm as extremidades e os lábios roxos, o nariz afilado na tentativa desesperada de respirar. O animador desdenha da inércia deles, simula falta de ar e finaliza o espetáculo jogando caixas de Cloroquina e Ivermectina. O público não reage. Não tem ar para levantar os braços ou xingar.
Cena 5: um grande banquete. À mesa homens fardados bebendo leite condensado direto da caixinha ou o despejando por cima de salmão, carnes e bombons, servidos por garçons magros, esfarrapados e salivando de fome.
Cena 6: em um dos espaços fechados, estantes cobrem todas as paredes. Nelas há panelas com rostos estampados, distribuídas e classificadas em galerias: comunistas, ex-presidentes, jornalistas, professores universitários, líderes mundiais, ativistas culturais, escritores, atores, músicos e compositores, cientistas, líderes indígenas e comunitários, blogueiros, juízes, lideranças negras, femininas, intersexuais, de direitos humanos, de igualdade de gênero, de cor e de credo. À frente um balcão com armas expostas que o público pode usar para atirar em qualquer uma das figuras.
Cena 7: duas filas paralelas. Em uma delas, pessoas animadas, em grupos, bem arrumadas esperando para entrar em uma festa. Na outra, pessoas ofegantes, chorando, sozinhas, deitadas no chão, esperando para entrar em um hospital.
Cena 8: almoço familiar. Um caixão tampado serve como mesa, ao redor oito cadeiras, apenas uma ocupada por uma pessoa que chora sobre o prato vazio a sua frente.
Cena 9: sala escura, com cheiro pútrido, onde ao se tentar caminhar esbarra-se em pessoas empilhadas.
Ao longo de todas as cenas, passam correndo atores vestidos com uma esfera coberta por filamentos tipo ventosas, gargalhando alto e gritando “mito”, o que logo é reverberado pelos grupos das cangas.
Para chegar à cena final, todos passam por uma simulação de um túnel do tempo que desemboca em uma sala repleta de pessoas de preto, caminhando a esmo, de cabeça baixa, sem a companhia de ninguém especial. Ultrapassar essa multidão é penoso, pois a lamúria é uma constante. Vencida a barreira humana de dor e de sofrimento, chega-se a duas portas, acima de uma delas está escrito “Vivi a realidade”, na outra “Vivi uma ficção”. Você escolhe a porta de saída. Sua escolha define a vida de todos.
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