Vai pra Cuba


Maria Avelina Fuhro Gastal

De tanto me mandarem para Cuba, fui. Última viagem antes da pandemia. Na volta, quarentena, confinamento, até outubro de 2020, e isolamento social que se mantém até hoje. Quando liberada, quero voltar.

Desembarcamos no Aeroporto Internacional de Havana onde já havia cartazes orientando informar às autoridades se estivesse com algum sintoma gripal. Estávamos bem, cansadas depois de uma conexão com 6 horas de espera no Aeroporto do Panamá, onde alguns já usavam máscaras.

Do aeroporto fomos, em um serviço de van contratado, direto para Varadero.

Nossa hospedagem foi no Hotel Vila Tortuga, na modalidade All inclusive. O Hotel é administrado pelo governo de Cuba. A área externa é imensa, com quiosques ao longo dos jardins bem cuidados, onde há opções de bebidas como Daiquiri, Mojito, Piña Colada. Não bebo, então optava pela água saborizada disponível ou pelo café espresso. A piscina fica entre a administração do hotel e a praia banhada pelo mar do Caribe. Há serviço de toalhas disponível para os hóspedes, com direito a uma por dia.

As acomodações foram um problema. No primeiro quarto que ficamos, o chuveiro liberava pingos aleatórios, a válvula da descarga do sanitário trancava quando acionada e exigia uma boa dose de paciência para destravar. O colchão me fez apelar para o Dolamin Flex para garantir que eu não travaria como a descarga. A limpeza do quarto não era compatível com a minha noção de uma boa faxina, descobri quando um brinco caiu embaixo da cama e me ajoelhei para procurá-lo. Junto com ele encontrei algumas bolas de poeira. Solicitamos a troca de quarto, o que só foi possível dois dias depois, após visitarmos três opções disponíveis e escolhermos a menos ruim.

A alimentação foi um problema. Não conseguíamos identificar o que estava sendo oferecido no buffet. Tudo com muita gordura. Naqueles dias, comi omelete no café da manhã. goiaba e abacaxi no almoço e na janta.

Vivemos naqueles dias nosso primeiro choque de realidade. Acostumadas com bons hotéis de padrão internacional ou pousadas com bons serviços, tivemos que nos adaptar ao que nos era oferecido.

Os trabalhadores do hotel falam espanhol, inglês, francês e alemão, independente da função desempenhada. Não percebi haver intimidação pela posição que ocupam. Seguranças, garçons, pessoal da limpeza puxam conversa com os hóspedes, perguntam sobre os países de origem. Brasileiras, perguntavam a nós sobre novelas, Lula e o que achávamos deste senhor que deveria estar governando o país (claro que não assim, mas me nego a sequer pensar no nome dele, quanto mais escrever).

Varadero é linda, mas ainda não era a Cuba que eu queria conhecer. Contratamos um serviço de excursão no próprio hotel e fomos a Cienfugos, Santa Clara e Trinidad.

Em Santa Clara fica o túmulo de Che Guevara com um museu no local, Mausoléu Guevara. Os turistas são orientados a manter silêncio na visitação, adequado ao extremo sentimento de respeito que paira no ar, quase tangível. Não são permitidas fotos internas e o número de visitantes que pode ingressar é limitado. Indescritível a sensação que temos lá dentro. O culto a Che Guevara se repete por todos os lugares que visitei e sempre cercado por uma atitude de admiração e gratidão. Não vi nenhuma manifestação semelhante com relação a Fidel Castro. Talvez exista, mas eu não conheci.

Cienfugos é uma cidade, mas também o nome da região. Parece que estamos viajando pelo interior do nordeste brasileiro. Casas simples, grandes áreas de plantio ressequidas, pessoas sentadas à frente de suas casas, abanando para o ônibus que passa.

Trinidad é uma volta ao passado. Seria como estar em Minas da Inconfidência. Há restaurantes de boa qualidade, algumas lojinhas para compra de artesanato local, mas não me pareceu haver uma estrutura para exploração do turismo na região. Não havia quem pudesse nos falar sobre a história daquele lugar.

As estradas ligando esses essas cidades são estreitas, mas com boa pavimentação, mesmo quando não há asfalto.

De Varadero fomos para Havana. A Organização Mundial de Saúde já havia declarado a situação de pandemia. O medo e a preocupação aumentavam em nós. Evitávamos estar perto de quem falasse italiano, alemão ou tivesse traços asiáticos. Começávamos a enlouquecer.

Ainda no Brasil tínhamos feito um up grade para o hotel em Havana. Ficamos no Four Points by Sheraton Havana. Minha história capitalista vibrou. Quarto amplo, limpo, arejado, cama meio casal box só para mim, travesseiros fofos, frigobar, ducha de propaganda de TV, sacada, toalhas felpudas, lençóis macios e perfumados, café da manhã padrão internacional. Continuei na omelete, mas acrescentei frutas e queijos. Resisti aos pães, apesar de estar com mais fome do que o habitual.

No segundo dia em Havana, diagnosticados os dois primeiros casos de Covid-19 em Cuba. Suspensos shows, teatros e visitação a museus. Não conseguimos assistir Buena Vista Social Club nem visitar o Museu da Revolução.

Optamos por explorar Havana a pé e entrar nos espaços que fossem possíveis e seguros. Nos deslocamentos maiores, utilizamos taxi regular e os Cocotaxi, triciclo que trabalha a pedais, com assento duplo atrás do motorista, revestido com uma estrutura esférica aberta na parte frontal. Alguns funcionam com um pequeno motor, mas o condutor tem de pedalar mesmo assim. No último dia, não resistimos, voltamos para o hotel em um conversível coral, anos 50.

Andamos por uma cidade limpa, com diversos monumentos e esculturas em parques e ruas, muitas placas alusivas a escritores com trechos de suas obras. Prédios históricos restaurados e bem cuidados. Os cubanos são acessíveis e disponíveis para orientar e conversar. Insistem na oferta de seus serviços. Há várias bicicletas com assentos a reboque para turistas que circulam por Havana Velha. Aceitam, até pedem, gorjetas em forma de produtos de higiene. Tínhamos sempre nas bolsas um saquinho com sabonetes, shampoo e papel higiênico que trazíamos do nosso hotel chique. Robin Wood da higiene pessoal. Circulamos durante o dia e a noite sem jamais enfrentarmos qualquer situação que pudesse ter nos colocado em risco.

Pelo tempo de permanência, poucos dias, e a crescente preocupação com as notícias que recebíamos do Brasil sobre a pandemia, o que trago de Cuba são impressões do que pude ver e do que pude perceber nas conversas com os nativos. Em linhas gerais:

— percebem as dificuldades como consequência do bloqueio econômico imposto pelo governo americano;

— não vi moradores de rua;

— não há crianças pedindo esmolas ou comida nas esquinas;

— não presenciei nenhuma situação de furto ou roubo;

— não percebi estratificação social a partir da atividade profissional. Todos os trabalhadores são respeitados.

Conseguiria eu viver com tantas restrições econômicas? Teria muita dificuldade. Aqui conseguimos conviver com a restrição imposta a um número absurdo de brasileiros que vivem em situação de penúria ainda maior, desprotegidos pelo sistema social e político que ignora as condições desumanas e organiza e legaliza a exploração remunerando mal, suspendendo direitos trabalhistas, desarticulando e sucateando serviços públicos de acesso à saúde e à educação. Convivemos, mas não vivemos essa realidade. Apagamos essa realidade nas nossas rotinas.

“A solidariedade é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor.” Essa frase fecha o capítulo 2 – Dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade -, do livro Amor Líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos, de Zygmunt Bauman. Não há dúvidas de que o mercado consumidor triunfou entre nós.

Vejo as mais de 2800 mortes no Brasil por Covid em 24 horas, ouço o prefeito de Porto Alegre dizendo que sempre cabe mais um nos hospitais, quando as pessoas estão morrendo sem acesso a leitos de UTI, morrendo sufocadas, fico sabendo de carreatas provocando buzinaço em frente a hospitais lotados e com equipes de profissionais esgotadas e lembro de frases que ouvi de dois cubanos diferentes.

Situação 1: a operadora de turismo do hotel administrado pelo governo cubano disse que a presença de turistas vinha trazendo uma situação muito desigual para a população. Quem trabalha na área viu seu poder aquisitivo aumentado em função das gorjetas. Como profissionais de saúde e de educação não prestam serviços a turistas, criava-se uma situação de injustiça social. Vinham tentando minimizar esse impacto compartilhando o ganho extra com os professores, médicos, enfermeiros em suas comunidades.

Situação 2: um motorista de taxi de propriedade do governo cubano me disse a frase que me acompanha e inquieta desde então: “Nós não temos muito, mas o pouco que temos dividimos entre todos”.

Na Cuba comunista, solidariedade. No Brasil capitalista, indiferença. Qual régua mede o fracasso?

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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