Verdade difusa


Maria Avelina Fuhro Gastal

Menti ao dizer que havia comprado as flores quando vinha para casa. Foi assim que acabamos nos separando. Meu marido percebeu que ao longo de todo aquele tempo eu recebia flores de um outro homem. Vivi novamente um período de abandono, me fechei em casa, tinha dificuldades para sair da cama. Uma camiseta velha e quilos de chocolate me bastavam.

A morte da minha vó me obrigou a sair de casa. No velório, observando minha mãe, tive certeza de que ela conhecia o segredo que minha avó carregava. Mas eu jamais saberia, pois nossa relação era de silêncios. Castiguei-a me mantendo afastada até a sua morte. Nesse dia, minha vingança final. Enterrei-a calçando sapatos de bico fino. Ela sempre sentiu muitas dores nos dedos ao usá-los para agradar ao meu pai.

Busquei na arte espaço para os meus conflitos. Pintei quadros sombrios e natureza morta em volta do meu umbigo.

O movimento das ondas do mar mostrou-me que eu não era náufraga. Da explosão de desejos à retomada da vida, reencontrei velhas amizades, vivi as histórias lidas nos livros, busquei vestígios de mim e dos meus pais nas anotações e comentários de cada página folheada.

Experimentei novos relacionamentos. Encontrei o amor na Internet, mas acabei esfaqueando-o na cozinha da minha casa. Fechei a porta. Deixaria que os pingos incessantes da torneira da pia resolvessem o resto.

Assim poderia ser a minha vida. Ou talvez sejam outros os trechos que a deveriam compor. Não raro, conhecidos ou pessoas até mais próximas buscam nas histórias que conto partes de mim. As frases iniciais deste texto basearam-se em fragmentos de contos constantes dos livros “Nós” e “Ecos e Sussurros”.

É comum o leitor confundir o narrador com o autor. Alguns enxergam as narrativas como confissões disfarçadas da inteligência ficcional por de trás da obra. Dessa forma, toda história contada seria, no fundo, autobiográfica.

Já ouvi que determinado conto seria um recorte da minha vida, ou que eu ou algum familiar seríamos uma das personagens ou, ainda, que tudo seria inventado para contar uma história que eu teria vivido ou para expressar desejos e conflitos reprimidos.

As histórias são universais. A vivência, individual. Claro que a nossa experiência ativa o olhar que lançamos ao mundo e, a partir dele, buscamos alternativas para contar aquilo que todos vivem: amor, abandono, traição, desamor, violência, discriminação, perdas, luto, rejeição, insegurança, superação, conflitos familiar, parental e conjugal, insatisfações, temores, dúvidas. Tentamos construir personagens verossímeis, criamos atitudes, palavras que os faça humanos, contraditórios e incompletos, mas coerentes com suas limitações. A realidade, em ficção, nem sempre convence o leitor.

Romances, novelas, contos e crônicas são obras de ficção. Precisam de verdade e coesão interna, mas não são realidades do autor disfarçadas. Mesmo se forem, ainda assim são ficções. Lembrem-se que nem mesmo a História é uma verdade. Ela é uma versão dos fatos narrada pelos vencedores.

Quando publiquei a crônica Pingos e respingos nesta página em 2018, recebi inúmeras indicações de encanadores. Nela usei a metáfora de uma torneira pingando para falar sobre o filme Manchester à beira-mar. Eu não tinha perdido o sono por causa de nenhuma torneira, mas os leitores foram prestativos e tentaram me ajudar a resolver um problema que eu não tinha, era ficção.

No conto A última gota, publicado no livro Ecos e Sussurros, de novo uma torneira pingando simboliza a solidão e a tristeza de uma mulher que perde as referências construídas como identidade pessoal. Ficção que se fez realidade quando, entre o Natal e o Ano Novo, a torneira da minha cozinha começou a pingar. De pingos passou a um fio constante de água e só consegui alguém para consertar o problema na primeira semana de janeiro. Com medo de uma profecia auto cumpridora, jurei nunca mais colocar pingos em qualquer outra narrativa ficcional.

Desconfiem da certeza de que o autor está nas histórias ou até mesmo nas crônicas. Será que eu realmente lavo as alfaces tantas vezes? Livros de temperos, carnes, saladas foram, em algum momento, meu interesse na Feira do Livro? Terá havido um certificado de censura de filme expedido com a data de meu aniversário e essa teria sido a chance de alguém me dizer que eu era importante para ele?

Não busquem por mim nas histórias. Mesmo que eu tenha dito na apresentação de Marias e Clarice: “Ouça-me e saberá o que penso. Leia-me e descobrirá o que sinto”, duvide sempre, não só de mim, mas de qualquer escritor. Busque a coerência na obra, não no autor.

Escrevo contos. Comecei uma novela. Nesta página publico crônicas. Narrativas ficcionais. Criar, costurar tramas, construir personagens, montar cenários dão forma às histórias. Usamos nossas observações do mundo e das pessoas para nos aproximar do verossímil, mesmo que tenhamos que mentir para tanto.

Lembre-se que esta é uma crônica. Nas crônicas não há personagem, mas a presença da persona, identificada como do próprio autor. Se a crônica também é ficção, a chance de que nada aqui escrito corresponda à realidade é grande. Decida no que acreditar.





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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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