Maria Avelina Fuhro Gastal
Cena 1: Montparnasse
A mesa encostada à janela permite a visão das ruas que cercam o Café. O céu cinzento e a ameaça de neve espantam os transeuntes, os poucos que se arriscam cobrem-se com pesados agasalhos. Não há rostos nem mãos, apenas um amontoado de panos e lã tapando qualquer detalhe que diferencie as pessoas. O ambiente interno é aquecido, poupo o gasto com a calefação do minúsculo apartamento que ocupo a três quadras daqui. Com a máquina sobre a mesa, carrego o papel, tabulo os espaços e avanço para o terceiro capítulo. O ruído dos clientes não me atrapalha, eles serão os coadjuvantes da história de James e Emily. Olho o relógio, os ponteiros sinalizam o final da manhã, tempo de abandonar os cafés e pedir um conhaque. Depois do primeiro gole, a primeira frase. As ideias fluem e tomam forma em harmonia. Hoje, o lixo permanecerá vazio.
Cena 2: Nova York
Da janela vejo as miniaturas que ocupam as ruas. Daqui são formigas em carreiras num ritmo alucinado. Fecho os vidros, me afasto do mundo, me aproximo de Alex e Kristen. Eles me aguardam depois de dias de abandono. Ressurgiram entre as notas de meu saxofone enquanto as luzes da cidade apagavam o brilho das estrelas. Este será o cenário deles, um estúdio, sem paredes, revestido por tijolos crus e canos aparentes. Afastados da pressa da cidade, mergulharão nas mágoas e ressentimentos construídos em silêncios meio ao ruído infernal de suas vidas. Esvazio o cesto de lixo como um ritual de exorcização dos demônios que me tolhem a escrita. Sirvo um scotch. Abro as portas para eles, acomodo-os em meu sofá e os encaro. Não tardarão a falar.
Cena 3: Positano
A varanda abraça minhas ideias. Dela vislumbro o mar sem ondas, de um azul que estará na cor dos olhos de Pillar. A melodia dos sons de crianças brincando caracterizará os humores de Paolo. Passarão o dia caminhando pelas ruelas sem se perceberem. O calor do sol, as cores do lugar cegarão seus olhos para as pessoas. Não enxergarão nada além do entusiasmo de vida que os cerca, mas não os habita. A intensidade da luz do dia me trará a pulsação necessária para colocá-los explorando as encostas que acolhem Positano. Quando a lua se refletir no mar, servirei um cálice de vinho e brindarei ao encontro dos dois. No cesto de lixo, restará a solidão.
Cena 4: Menino Deus
Cama arrumada, louça lavada, aspirador passado, caminhada e pilates feitos. Entro no quarto transformado em escritório, ligo o computador. Não consigo decidir qual arquivo abrir. O da novela, recém iniciada e que pouca avança, pois Virgínia e Breno não me convencem? O dos textos da minha página já que não publico nada há quatro dias? Ou um novo arquivo para o conto que me surgiu como ideia na noite de ontem? Ligo o ar-condicionado para espantar o calor acumulado no espaço. Em poucos minutos, gelo. Desligo o ar, ligo o ventilador de teto. O barulho das pás girando, associado ao da britadeira na esquina, me desconcentra. As ideias vão se acavalando e não consigo decidir pela novela, crônica ou conto. Enquanto isso, tomo um cafezinho para entrar no clima. E mais um. O escritório volta a ficar quente. Ar, novamente. Visto uma camiseta de manga curta para não congelar. Sinto sede. Busco uma garrafa de água com gás. No primeiro gole, a decisão. Escreverei a crônica. Basta, agora, escolher o assunto. Vasculho entre as ideias anotadas. Na metade delas, toca o interfone. Desço para pegar a encomenda que não lembrava de ter feito. Retomo a lista de ideias. Opto por uma. Escrevo a primeira frase e começa uma briga entre os guardadores de carro da rua. Feia. Escuto sirene. A polícia estaciona bem abaixo da minha janela. As vozes que escuto agora são dos policiais. Me aproximo do vidro para ver o que está acontecendo. Percebo nuvens pesadas no céu. Provável tempestade. Faltará luz? Retorno ao computador para aproveitar o tempo antes da chuva. De longe, um chiado. Meu Deus! O feijão. Apago o fogo torcendo para não ter queimado. Esqueci de marcar o tempo de pressão. Volto para o texto. Tenho quinze minutos para escrever algo antes de começar a terapia. Não será possível reter em mim pelos quarenta e cinco minutos de sessão os 500ml de água bebidos. Considerando banheiro e a hora de início da terapia, não terei tempo de escrever nem uma linha sequer. Fica para depois. Quando terminar a sessão, almoço, lavo a louça e retomo a escrita. Dá tempo antes da aula das 16h. Se não terminar, fica para depois da aula das 18h30. Sem café, sem água, sem banheiro, sem distrações. Com a chuva, talvez, o encanador não venha, de novo. Alguma coisa vou escrever hoje. Trovão forte. Faltará luz?
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