Amenidades e tontice


Maria Avelina Fuhro Gastal

Quem não anda precisando de um respiro? Então, resolvi escrever sobre amenidades. Reconheço que os últimos textos publicados foram sombrios. Apesar dos tempos difíceis, nossa vida é mais do que dor ou desesperança. Ou pelo menos deveria ser. Hoje, vou falar sobre os filmes da minha vida.

Começo pedindo desculpas a todos os Gastais, vivos ou mortos, apaixonados e profundos conhecedores do cinema, pois não vou escrever sobre grandes obras, roteiros ou diretores, mas sobre filmes que de alguma forma me tocaram, mesmo que alguns deles não estejam nem perto de ser uma grande película.

Minhas primeiras lembranças de filmes são Tom e Jerry e Rin-Tin-Tin. Odeio ratos e não teria gatos ou cachorros, mas, nas telas, eles me encantavam. Acho que Tom e Jerry liberavam meu lado sádico e o desejo secreto de massacrar meu irmão que tinha uma dentada avassaladora. Ver aquele ratinho enlouquecendo o gato que se achava era a minha vingança freudiana. Mas, como os personagens, nós éramos inseparáveis e, sem o outro, teríamos uma vida vazia, sem desafios. Já no Rin-Tin-Tin não era o cachorro que me encantava. O Cabo Rusty era a minha redenção. Afinal se um menino ruivo e sardento podia estrelar um filme, talvez houvesse alguma chance para mim no mundo.

Daí veio Romeu e Julieta de Franco Zeffirelli. Assisti ao filme 17 vezes. Claro que não pagar para entrar nos cinemas ajudou a alcançar esse número histórico. Sabia de cor as falas, toda a discussão se o canto havia sido da cotovia ou do rouxinol, e reconhecia cada músculo da bundinha do Romeu. Hoje me arrependo de não ter assistido a mais uma vez, assim nem aqui teria o 17 fazendo parte da minha história.

Foi no American Graffiti que fiz minha primeira manobra romântica. Não me perguntem como, mas acompanhada de um bando de amigos e, claro, do meu irmão, dei um jeito de me sentar de maneira que ficasse uma cadeira livre ao meu lado para alguém, na época especial, caso chegasse atrasado, tivesse que se sentar ao meu lado. O problema foi que ele chegou com um outro amigo. Suspense total. Quem se sentaria ali? Deu certo. E daquelas incoerências que só quem viveu um período de ditadura vai entender, o certificado de censura do filme fora expedido na data do meu aniversário. Meu comentário foi pueril, viu como eu sou importante? A resposta foi mágica, tu és mais importante do que imaginas. Pronto, quem diria que um certificado de censura pudesse ter tanto valor para mim? Juro que sou contra a censura, mas daquele certificado lembro com carinho.

Como desejei que Francesca tivesse aberto a porta da camionete do marido e ido ao encontro de Robert. Já deu para perceber que assisti a As Pontes de Madison mais de uma vez, sempre torcendo para que ela tivesse coragem para mudar a sua vida. Quantas vezes desejei não ter aberto a porta daquele carro e, assim, ter tido a coragem de mudar a minha vida. Nem ela nem eu o fizemos. Não dava. Estávamos presas em nossas crenças e fraquezas. Fosse o movimento que fizéssemos, seríamos derrotadas. Daqueles paradoxos que só os anos nos permitem compreender e, então, nos perdoar. Fizemos o que nos era possível naquele momento.

Filme bofetada foi O espelho tem duas faces. Ver aquela mulher sem atrativos, insegura, dominada pela mãe, que para piorar era linda, encontrar forças para se transformar e encontrar em si própria alguém capaz de provocar amor e desejo foi como um pontapé para a terapia. Os filmes me produzem insights, mas nem sempre me levam à ação. Entre a ideia e a execução levo um bom tempo, mas chego lá.

Cinema Paradiso tem que estar neste texto. Encontro nele um pouco do meu pai, da minha infância, do meu irmão, da relação da nossa família com o cinema. Como Totó, conheci o cinema de dentro das salas de projeção, dos gabinetes das gerências, das pilhas de rolos de filmes e dos posters publicitários dos filmes. O cinema não era só uma sala para divertimento, era um lugar de presença do meu pai. Aprendi a cultuar aquele espaço. Talvez por isso, hoje, o cheiro de pipoca nos cinemas me incomode tanto. Eu não vou só ao cinema, vou ao encontro de ausências e lembranças.

Sob o sol de Toscana, Simplesmente complicado, Antes do anoitecer, Meia noite em Paris parecem não ter nada em comum. Mas como estou falando de mim, faz todo o sentido. Eles me trazem a sensação de bem-estar, de descobrimento de prazeres e alegrias, de recomeço, de encontrar algo além do já vivido. Falam de livros, de viagens, de amigos, de possibilidades de outros amores. Tenho vivido assim. Entre amigos, filhos crescidos, novos papéis, novos desafios. Tenho encarado a escrita, mergulhado na literatura, conhecido novos lugares, aprendido a olhar de forma diferente lugares já conhecidos. Ainda não me arrisquei em uma viagem sozinha. Mas acho que não quero. Gosto de compartilhar, de descobrir junto, de conversar, de trocar, de aprender com o outro. Talvez eu só precise me aventurar mais em novos roteiros com antigas e novas companhias.

Coringa, com certeza, não é uma amenidade. Mas impossível não falar dele. Ele é violento? Sim. Foi isso que me impactou? Não. A violência dele é concreta, espalha sangue pela tela, mas a perversão com que ele é tratado ao longo da vida pela mãe, pelos colegas, pelas instituições, pela mídia é silenciosa, mas constante. Penso em nós, no medo que sentimos, nos riscos que vivemos frente à violência. Mas vejo, também, nossa indiferença à perversão com que as pessoas são tratadas. Reclamamos do que, mesmo?

A Odisseia dos tontos. Nós vivemos a Cruzada dos tontos. Tentamos destruir um ao outro, enquanto somos todos destruídos por eles. Essa é a tontice.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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