No escurinho do cinema


Maria Avelina Fuhro Gastal

Nossa diferença é de nove meses, ele de setembro de 1957 e eu de junho do ano seguinte. No entanto, só passou a fazer parte de minha vida quando eu estava com seis meses. Dividia com ele meu pai. As tardes e noites eram dele e as manhãs e madrugadas minhas. A divisão não chegou a ser problema. Morávamos no andar de cima, assim, muitas vezes, vi meu pai em horários que não eram meus.

Logo após o meu nascimento, meu pai foi contratado para gerenciar o cinema Cacique, inaugurado à época que minha mãe engravidou de mim. Após as tratativas e efetivação do contrato, a mudança para Porto Alegre. Meu pai veio antes, minha mãe e eu em dezembro de 1958. Eles sempre contaram a emoção na despedida da família no aeroporto de Pelotas. Sim, viemos de avião, pois meu avô não concebia um bebê sacolejando na estrada por tantas horas. Não tenho certeza da estabilidade dos voos naquela época. Talvez isso explique o pavor em voar que me acompanhou por décadas.

Minhas primeiras lembranças não estão ligadas ao Cacique, mas a um movimento cadenciado e vigoroso de braços ao sacudir um recipiente metálico. Não um movimento qualquer. Seguia um ritmo próprio de dois pra lá, dois pra cá, sempre na altura dos ombros, alternando entre o esquerdo e o direito, sem jamais encostar neles. Se havia um som produzido pelo chacoalhar, não sei, provavelmente sim, mas a música vinda de um piano preenchia o ambiente. Talvez nem fosse bem assim, afinal eu era muito pequena e não sei o quanto tem de real na lembrança e não há mais com quem confirmar. Mas, com certeza, a confeitaria que ficava ao lado do mezanino do cinema Cacique existiu na década de sessenta e eu circulava por ela acompanhada dos meus pais, encantada com o bailado de braços sacudindo uma coqueteleira.

Levei algum tempo para entender a essência de uma sala de projeção. No início, até a ignorava. Não era mais do que o lugar de trabalho do meu pai. O escritório dele ocupava um espaço entre a sala de espera e a de projeção. Era comprido, teto inclinado, mesa ao fundo e na volta uma série de posters e rolos de filmes. Para acessá-lo, entrava-se em uma ampla sala de espera, ladeada por espelhos, onde enormes sofás em couro acomodavam os espectadores à espera da próxima sessão. Ao fundo, uma bomboniere expunha as mais variadas balas e chocolates. Lembro das Azedinhas, das de goma, das gasosas de laranja e dos chocolates Bastão de leite e do Refeição. Não eram permitidas pipocas nem bebidas. Havia, ainda, um pequeno cartaz proibindo o acesso trajando chinelos ou bermudas.

Minha primeira experiência como espectadora foi nas sessões matinais do Festival Tom e Jerry, aos domingos. Já não morávamos no mesmo prédio em que o cinema funcionava, mas a duas quadras dali. Meu levava a mim e ao meu irmão, nascido em Porto Alegre um ano depois da nossa vinda para cá, fazia-nos sentar nas cadeiras mais próximas ao escritório dele e, por um par de horas, assistíamos na tela a reprodução das nossas brigas e implicâncias. Tínhamos regalias na bomboniere, sem custo e de livre escolha. Claro que a consequência era a inapetência no almoço e as constantes dores de barriga nas tardes de domingo. Hoje penso que bem mais do que o nosso divertimento, minha mãe buscava uma folga de nós. Com toda razão.

Os detalhes da sala de projeção não me interessavam, com exceção das gravuras nas paredes laterais, dois índios guaranis, um deles montado em um cavalo empinado e o outro em pé, altivo, empunhando uma lança e uma boiadeira. Só muito tempo depois vim a saber que era uma obra de Glauco Rodrigues.

O cinema era presente em nossa família, tanto quanto política ou futebol. Meu tio, PF Gastal, por anos escreveu sobre cinema para o jornal Correio do Povo, assinando como Calvero, uma referência ao palhaço criado por Charles Chaplin em Luzes da Ribalta. Crescemos em meio a debates sobre roteiros, argumentos, diretores, produtores, cenários, erros de continuidade, fotografia, trilhas sonoras, problemas de distribuição de filmes, censura.

Meu irmão e primos da mesma geração sempre tiveram facilidade para o conhecimento técnico das películas. Eu não. Esqueço nome de diretores, de atores, de estúdios a que os filmes pertencem. Em mim permanecem as sensações produzidas pelos filmes e as saudades dos cinemas de rua.

Depois de alguns anos como gerente, meu pai foi promovido à responsável pela rede de cinemas que incluía o Cacique. Nossas possibilidades se ampliaram, primeiro no Centro, perto de casa, à medida que crescíamos, nos bairros mais afastados.

No início da década de setenta, o Cine Scala já ocupava o mezanino do Cacique. O acesso a ele era por uma escada lateral ao Cacique. Quando se entrava, a primeira visão era da tela meio convexa. Para acessar as cadeiras, tinha-se que descer escadas dentro da sala, que era pequena e charmosa. Problemas de acústica faziam com que os sons dos dois cinemas se misturassem. Às vezes, no meio da emoção do encontro de um olhar apaixonado, ouvia-se o bombardeio das linhas inimigas. Na mesma década, o Cacique se reinventou com as avant première à meia noite das sextas-feiras e dos sábados.

Adolescentes, circulávamos sem pais, sem medo e sem perigo entre o Cacique, o Scala, o Rex, da mesma rede, e entre o Guarani, o Imperial e o Victória de outros grupos, mas com acesso gratuito garantido por uma permanente de abrangência nacional emitida pelo Sindicato de distribuidores de filmes. Havia uma limitação do número de pessoas que podiam ingressar com ela. A nossa dava direito a quatro pessoas por sessão. Resultado: assisti a Romeu e Julieta dezessete vezes para atender aos apelos de todas as amigas. Não reclamo. Era imperdível a oportunidade de ver a bundinha do Romeu por breves segundos na tela.

Meu irmão e eu fomos Totó muito antes de Cinema Paradiso. Assistimos a filmes dentro da cabine de projeção. Meu pai entendia que cabia a ele, e não a um censor, decidir o que era adequado para os filhos. O chiado da película rodando nas enormes máquinas e a agilidade do operador em trocar os rolos no momento certo são as memórias que guardo. Era presenciar a magia. Quando o filme rompia, momento tenso, o procedimento implicava em algo com fogo. Não lembro se eram usadas velas ou fósforos, mas o cheiro é inesquecível.

Com a maioridade ganhamos os bairros. O roteiro por nós eleito passou a incluir os cinemas Ritz, Eldorado, ABC, Marrocos, Avenida, Vogue, Coral, Roma, Baltimore, Bristol. Excluíamos os da Zona Norte, pois a gasolina era rachada, e outros em que a programação não atendia as nossas expectativas. Depois da sessão, parada no Zé do Passaporte, no X da Ramiro ou uma esticada até a Doca das frutas. Quando em casa, jogo de mímica entre os amigos, com a participação dos meus pais, no qual o desafio era descobrir nomes de filmes.

Jovens adultos, tornamo-nos cults, frequentadores assíduos do Bristol e do Projeto Cultural Cinema à Meia-Noite do ABC, idealizado e desenvolvido pelo meu irmão, Edmundo.
Minha relação com o cinema sempre foi visceral. Minhas memórias e vivências passam pelas salas de projeção. Risos, muitas lágrimas, roçar furtivo de mãos e beijos iniciantes ficaram nelas, em segredo.

A voz anunciando “baleiros, balas”, o rugido do leão da Metro, a música do Canal 100 são mosaicos que compõem o que sou. Até mesmo o abominável certificado de censura está em mim incluído. Em uma das sessões com um grupo de amigos, fiz malabarismos para deixar livre ao meu lado uma cadeira, sem mesmo ter certeza se ele iria. Foi. Na emoção boba dos dezesseis anos, quando a data de expedição do certificado de censura correspondia a do meu aniversário, virei para o lado e, em tom de brincadeira, disse, “viu como sou importante?”. A resposta, “tu é muito mais importante do que pensas”.

Nas salas de cinema cresci, descobri o amor, chorei decepções, amaldiçoei fascistas, experimentei superações, alimentei saudades. Saía delas para a rua, sem o burburinho de vozes esvaziadas de rostos, sem a luminosidade sempre igual, seja dia ou noite, sem o ataque de vitrines e cafés me convidando a consumir, ignorando minhas emoções.

Meu pai morreu em 1993. O Cacique fechou em 1994. Primeiro foi transformado em um estacionamento, depois abandonado, incendiou, arderam nas chamas as gravuras dos índios de Glauco Rodrigues, hoje, é um supermercado. Onde ficavam as fotos de Alain Delon, Al Pacino, Elizabeth Taylor, Richard Burton e de tantos outros de igual talento, estão as imagens de saladas, carnes e pratos de um buffet a quilo.

Perdemos as ruas. Nelas não há mais cinemas. Da rede que meu pai tanto cuidou, restaram alguns esqueletos ocupados por estacionamentos, restaurantes rápidos e academias. Lugares de muita gente e pouca emoção. Outros sumiram, como se jamais tivessem existido. Vamos apagando histórias, renegando memórias.

Vídeo, Net, Netflix, Prime, home theater não substituem o cinema. O filme é o mesmo, está ali, mas não há a magia, a escuridão, o ritual, a atenção em uma sala de projeção, onde desconhecidos dividem um espaço de emoções e descobertas. Despimo-nos de padrões e limites para liberar sentimentos. Anônimos entre muitos, conectamo-nos com nossos medos, monstros, desejos e sonhos.

Não sei se os cinemas que existem sobreviverão à pandemia. No Guion aproximava-me da emoção experimentada nas salas apagadas na geografia da cidade. Sem meu pai, sem meu tio, sem os cinemas de rua, sem meu irmão, com primos morando longe temo perder mais uma parte da minha história.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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