Enigma


Maria Avelina Fuhro Gastal

Só guardo aquilo que traz essência, significado. Pode estar em um cartão, em um pedaço qualquer de papel ou apenas na memória onde preservo palavras, frases, conversas, olhares, momentos e sensações. O protocolar, aceito, agradeço, mas não mantenho, pois falta o que o tornaria único, portanto, perene, mesmo que não mais presente.

Tenho arranjos de flores secas pela casa ou pétalas dentro de livros. São aquelas que marcaram pela forma como foram dadas. As outras, compradas para enfeitar os demais vasos, substituo quando perdem a beleza, pois essa é a única qualidade que possuem, são vazias de significado.

Tenho mais dificuldade de me desfazer de um tênis furado do que de um sapato novo que não esteve nos meus pés em nenhum caminho que me trouxesse descobertas, prazeres ou desafios.

Dos filhos, dos sobrinhos, da neta guardo todas as manifestações de carinho, desde a garatuja até as palavras mais tocantes grafadas em cartões, bilhetes, canecas, dedicatórias. A cada uma acrescento lembranças; são os fios que traçam a nossa caminhada.

Sou acumuladora de sentimentos, emoções, lembranças, não de objetos; só permanecem aqueles com essência. Há uma exceção, e não entendo o motivo.

Acumulo chaves. Não todas. Deixei para trás as de casas em que morei, as de carros que tive, as de salas e consultórios onde atendi; o vivido trago em mim. Mantenho as que não sei a que espaço, fechadura pertencem, aquelas que desconheço o que trancam ou abrem.

Elas estão em uma caixa quadrada, não muito grande, talvez 10cmx10cm, com 6 cm de profundidade, mais ou menos, em uma das gavetas do armário da sala. Contradizem todo o resto que existe ali, mas não consigo me desfazer delas.

Posso pensar em diversas explicações. Todas tentativas, nenhuma resposta. Se existem, já tiveram uma função. Se estão comigo, a algo da minha vida já deram acesso. Se não lembro, talvez tenha trancafiado por algum motivo. Se delas me desfaço, impedirei a abertura que possa me trazer libertação ou me liberarei daquilo que me prende?

E se alguém as encontrar, entenderá que não lhe pertencem, e, portanto, não pode usá-las? Chaves usadas sem permissão, não abrem, arrombam.

A caixa onde as guardo não tem chave, pois se eu a perdesse, perderia junto qualquer possibilidade de decifrar meus enigmas.

Nas chaves, a essência de todas as respostas que busco.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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