Gonçalves Dias, Drummond, Tom, Chico, o sabiá e eu


Maria Avelina Fuhro Gastal

Muito antes do calendário oficial determinar que estamos na primavera, a natureza já dá sinais. O verde colore as folhas secas e acinzentadas, as flores ensaiam cores diversas, as abelhas flutuam entre elas e os sabiás começam a sua sinfonia de conquista.

Meu primeiro contato com o canto dos sabiás foi na escola, “minha terra tem palmeiras, onde cantam o sabiá”. Palavras cadenciadas, mas sem o som do canto nem a compreensão do que seria colocar as saudades no exílio em figuras de encantamento com a pátria.

Lembro ainda de associar sabiá com uma vaia descomunal. Era muito criança à época dos festivais da canção em meados da década de 1960. Na minha memória, Disparada, A Banda, Alegria, Alegria, Carolina, Travessia, Ponteio, Domingo no Parque, Para não dizer que não falei em flores, Sabiá, BR3 misturam-se em um único festival, e dele, o que mais me impressionou foi a vaia à Sabiá. Aquele som era a primeira vez que ouvia e fiquei chocada ao saber que as pessoas poderiam vaiar, e muito. Talvez tenha sido minha primeira experiência com a ansiedade e com a impotência em consolar Tom e Chico que tinham se esforçado para fazer algo e ninguém respeitava.

Não há muito tempo, soube que, entre todos os outros dias inventados, há o Dia da Ave, celebrado em 5 de outubro, desde 1968, e, a partir de 2002, o símbolo é o sabiá.

Gonçalves Dias, Luiz Gonzaga, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Drummond, Tom, Chico já cantaram o sabiá em melodia, poema ou prosa. A sensibilidade dos artistas tocada pela sonoridade de um canto melodioso, evocador de amor e primavera.

O canto do sabiá entrou na minha vida quase ao mesmo tempo em que a maioria das pessoas com quem convivo passou a me chamar de Ave. Se eu fosse poeta, traduziria em versos essa coincidência, escreveria sobre o renascer da cor e da esperança após um período de penumbra. Mas não sei poetar. Talvez por retração da sensibilidade ou aprisionamento do afeto ou total falta de talento e competência. Me arrisco na prosa e é com ela que falarei do sabiá e eu.

Nós, o sabiá e eu, somos vizinhos. Tenho certeza de que um deles mora na árvore frondosa que avança os galhos na direção da janela do meu quarto. Nas redondezas, muitos outros habitam as copas nesta rua arborizada.

Criei uma relação mais íntima com aquele que é meu vizinho. A princípio, admirei a intensidade com que busca o amor, os sons que reproduz para garantir que a sabiá não duvide do comprometimento dele e do despudor em se mostrar tão disposto à entrega. Aos poucos, lamentei tanto esforço e a ineficácia de se fazer entendido. Cheguei a pensar que ela pudesse estar fazendo jogo de sedução, mas considerando a insistência dele, talvez as chances sejam mínimas, ou inexistentes. O canto melodioso já virou esganiçado. Todos os anos a mesma coisa. Quando ele vai aprender que só se exibir, cansa? A sábia tem mais o que fazer, não pode ficar à espera de um sabiá apaixonado pela própria voz. Ela quer voar por aí e pode estar bem longe com um sabiá, se não tão harmonioso no canto, mais consistente na intenção. Reconheço a persistência dele, se ele reconhecer a falta de iniciativa.

Ele parece abalado. Sofre de insônia. Berra a madrugada toda. Desespero afugenta e incomoda todos à volta. Eu estou por um triz. Lixe-se a primavera, o amor, a busca angustiada dele, mais um pouco apelo para um bodoque. Não para matar, mas um piperote na bunda pode fazer com que ele se mexa.

Se acham agressivo ou exagerado meu desejo, juntem-se a mim em uma grande vaia. Talvez a vergonha faça com que ele reveja a postura, tome tenência e que eu volte a dormir uma noite inteira.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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