Aurora precursora


Maria Avelina Fuhro Gastal

A noite é quente e úmida. O bichará ao chão faz a pele coçar ao seu contato.

Conversa com as estrelas. Há anos mantém com elas um diálogo intenso. Só as estrelas conhecem seus anseios. Respondem aos seus desejos com um brilho intenso e um silêncio respeitoso.

Estar ao relento não lhe é novidade. Mesmo na estância, buscava na escuridão da noite um pouco de paz para sua inquietação. Sob o céu é livre.

Não sabe ler, nem escrever. Conta os dias pelas tarefas, as semanas pela lua, as estações pelas cores das plantas, pelos cantos dos pássaros e pela intensidade do sol e os anos não lhe fazem diferença, pois nunca nada muda.

Do mundo só conhece aqueles pagos. Ouve dos velhos histórias de um outro tempo, em um outro local, onde a maior diferença é a liberdade. Só escuta, não conhece. Mas sonha.

Naquela noite as estrelas testemunham seu sonho. Nunca a liberdade esteve tão perto. O fim da guerra está próximo. Os comandantes estão inquietos. A ele só resta esperar.

Olha para a mão e não vê a lança em sua extensão. Falta-lhe uma parte. Nos últimos anos manteve sua vida e a dos companheiros com a força daquela arma. Cada inimigo que tombou, deixou-o mais próximo de seu sonho. Não se enxerga livre sem ela. Por ordem do comandante foi recolhida. Não há necessidade de mantê-la, dizia ele, pois não há risco de ataque.

Os olhos pesam. A madrugada já se despede. O silêncio lhe inquieta. Resiste. Não quer dormir. Teme adormecer sem sua lança e acordar no cativeiro. Ela é o seu caminho para a liberdade.

O silêncio é rompido. O chão cobre-se de vermelho. Seu peito arde. Não vê as estrelas. A aurora é testemunha. Não de seu sonho, mas de sua morte.


O Vinte de Setembro é precursor de qual liberdade? Conquistada a partir de uma traição, não faz de nós um povo aguerrido e bravo. Se há alguma chance de que nossas façanhas sirvam de modelo a toda a terra, reconheçamos o Massacre de Porongos como desonra. Sem essa virtude, somos escravos pela vergonha por nossos atos. Apagar as memórias, “branquear” a história, enaltecer traidores, não demonstra valor, constância. Não houve maior injustiça na ímpia guerra do que o assassinato dos Lanceiros Negros. Tiveram promessa de liberdade, receberam extermínio.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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