Bolhas de sabão


Maria Avelina Fuhro Gastal

Mais um domingo. Vigésimo quinto da quarentena. O de hoje, além de soterrado no vírus, está afogado entre dias de chuvas que não param. Mas, ainda assim, domingo, dia que elegi para levezas. Não me interessa a reforma administrativa, a loucura de pensar na volta às aulas em plena bandeira vermelha, a nossa falta de independência para comemorar o Sete de Setembro, as insanidades governamentais, não quero saber o número de mortos e contaminados nem a taxa de ocupação das UTIS. Só por hoje, quero brincar com as palavras sem colocar o peso da realidade nelas.

Sem sol, não tenho como realizar minha fotossíntese literária no janelão da churrasqueira. Não salvo a vitamina D nem diminuo a palidez pandêmica, substituindo-as por um leve bronzeado quadriculado pelas linhas da rede de proteção. O livro está mantido. Se não fossem as constantes indicações, talvez eu até que conseguisse zerar minha lista de leituras atrasadas durante a pandemia. Continuar sendo uma DLA (há um texto sobre o assunto aqui na página) é uma garantia de retorno a algo minimamente normal.

Se o vírus não resiste à água e sabão, por que não aproveitamos a chuva para brincar nas janelas, alpendres e sacadas de fazer bolinhas de sabão? Imaginem a cidade encoberta por estruturas voláteis, coloridas e de formas variadas. A cada estouro silencioso delas, a esperança de aniquilamento de um dos portadores da nossa angústia. Quando voltasse o sol, estaríamos livres para abraçar nossas saudades.

Temos água, sabão, alguns têm canudos ou podemos improvisar, buscar um espaço nas nossa cabeças para imaginar a construção de um. Desse jeito, traríamos ao pensamento busca de soluções para algo imediato, deixando em pausa a percepção de todas as ausências, de todas as vontades contidas, de tanta impotência frente à realidade.

Lembraríamos do nosso encantamento infantil ao ver as bolhas se desprenderem para flutuar no ar em um caleidoscópio sem vidros, no entanto recheado de cores e de diferentes formas. O encontro com a criança que um dia fomos nos traria disposição para soprar mais e mais. Bolhas coloridas cobririam o céu cinzento, pingos de chuva as romperiam, toneladas de água e sabão escorreriam em calçadas, plantas, carros, canteiros. No caminho até eles, percorreriam o ar. O vírus se encantaria com as cores além de seu verde putrefato, e se abraçaria a elas. Morreria em um abraço. Nós, estaríamos livres para um, para vários, para todos que amortecemos desde março.

Leveza melancólica? Leveza esperançosa? O cansaço da situação tem, algumas vezes, trucidado com o riso fácil e, até mesmo, com a graça fortuita, mas nossa luta é para que ele não nos faça desistir.

A cada dia, faça sol, chuva, frio ou calor, estamos mais perto de superar este momento, não importando quanto tempo a mais ainda falte. Não dá para deixar que o cansaço nos torne inconsequentes e nos faça jogar a toalha antes do último round. Continuemos em casa, quando possível. Continuemos afastados, ainda que cada vez doa mais.

Se bolhas de sabão não matam o vírus, decretos também não.

Deixe um recado para a autora

voltar

Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

Clique aqui para seguir esta escritora


Pageviews desde agosto de 2020: 244859

Site desenvolvido pela Editora Metamorfose