Decadência e descobertas


Maria Avelina Fuhro Gastal

Meu pé doía bem na famosa curva de bailarina. Qualquer sapato parecia tortura. Com salto, sem salto, nada dava folga. Passagens compradas exigiam solução imediata. Apesar do alto valor, comprei um Skechers. Não foi o meu primeiro, mas com certeza o mais caro.

Entre aquele março de 2017 e abril de 2019, o Skechers cinza claro viveu momentos de glória. Cruzamos a Colômbia, exploramos o Canadá, traçamos Nova York, passeamos pelo Chile, curtimos Porto de Galinhas e nos equilibramos em Paraty. Fomos companheiros na serra, no litoral e nos recantos de Porto Alegre. A partir de maio do ano passado, ele ocupou o lugar privilegiado de escolhido para caminhadas, pilates, dança e academia. Em março, não me acompanhou a Cuba. Já apresentava sintomas de desgaste pela idade.

Cheguei de Cuba em 18 de março, da quarentena da viagem direto para a quarentena da cidade e dali para o isolamento social. De início só usava o Skechers cinza. Fosse pelo conforto ou pela busca de memórias táteis que me levassem para fora das paredes do meu apartamento, calçava o tênis de manhã e só tirava na hora de ir para cama.

Depois de um mês de uso, percebi um esgaçamento do tecido na altura do dedão do pé direito. Dali para um pequeno furo foi menos do que uma passada. Continuei usando, afinal em vídeos ou em aulas on line ninguém enxerga os pés.

Aquele pequeno buraco só passou a me incomodar uns dois meses depois. Não o buraco em si, mas o fato de eu continuar usando um tênis furado. Tipo sinal de alerta.

Junte um furo no tênis na altura do dedão às unhas nunca mais feitas em manicure, aos cabelos grisalhos e sem corte que gritam comigo no espelho, às maquiagens esquecidas na gaveta, às calças jeans ou sociais, às saias, vestidos, jaquetas entocados nos armários, aos sapatos, botas e tênis que nunca mais saíram para passear e imagine meu mergulho no pequeno furo.

Desde o início deste já tão longo período de isolamento mantive a rotina de exercícios, os cuidados com a alimentação, a busca por atividade e cursos que me mantivessem conectada com o mundo, mas fui, aos poucos, me deixando para lá. Cabelos sempre presos, as mesmas calças e camisetas de ginástica, nenhuma maquiagem. Cuidei da saúde, me isolei para permanecer viva, mas abandonei a vontade de me arrumar.

Um insight partiu de um pequeno furo em um tênis e ganhou a imensidão de uma caverna inexplorada.

Estamos isolados, muitos reféns da própria casa, mas ainda somos o que éramos. Precisamos construir adaptações, mas não podemos desistir de nós. Descobrir novas formas de se olhar e enfrentar a passagem do tempo. Deste que vivemos e de todos os outros que já ficaram para trás e, por isso, são partes de nós. Construíram nossa história.

Percebi que me impunha absurdos. Testes para provar minha capacidade ou independência. Mandei às favas a ideia de fazer uma viagem sozinha. Não quero. Viajar, para mim, é estar com quem eu amo e descobrirmos juntos lugares, histórias, ruelas, sabores, recantos e conversar muito sobre cada experiência. Com amigos de anos, com amigos recentes, com filhos, com neta, com genro, com nora e, se duvidar, topo até em levar cachorro, gato e papagaio. Estou com crédito de sobra em tempo sozinha. Quando a porta da minha casa abrir, quero estar com todos, com cada um, com muitos.

Quando só, procuro o que fazer. Não por medo da solidão, mas porque tenho prazer em uma casa arrumada, em uma boa leitura, em palestras e cursos que me tragam desafios e conhecimento. Então, assumo que fazer nada não me faz feliz. Nem sei como isso funciona. Mas sei o quanto gosto de parar para bater papo, receber amigos, família. Os preparativos e a quantidade de louça para lavar não me incomodam. O incômodo está na ausência, na falta de perspectiva do fim deste isolamento.

Enquanto o final não chega, solto os cabelos, às vezes, e percebo que ele não é tão rebelde como eu sempre acreditei. Descubro certo charme nas ondas e brinco com elas. Os fios brancos se misturam aos fios quase ruivos que eu mantinha mascarados. Trouxe o rímel à vida antes que secasse na gaveta. Troco brincos, uso hidratante perfumado e me pego escolhendo blusas em cores que eu me sinta bonita ao usar.

O tênis com o furo ainda é o eleito para o pilates e GAP. É confortável. Depois do banho, opto por outro que combine com a roupa escolhida. Ainda mantenho as calças de academia. Quem sabe um dia decido rever.

Talvez não seja só o conforto que me faça manter o uso do tênis por alguns momentos do dia. Eles estiveram comigo pelo mundo, pela vida. Quando eu puder estar lá de novo, ele poderá descansar. Isso se ele resistir.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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