Maria Avelina Fuhro Gastal
Não sei se foram as chuvas intensas, os ventos assustadores, os raios e trovões angustiantes, o medo de reviver o mês de maio, mas nos últimos dias uma música insistia em se fazer presente no meu pensamento.
“Há muito tempo que ando
Nas ruas de um porto não muito alegre”
Marcas da enchente, inoperância da administração pública, lixo acumulado, buracos nas vias, remendos grosseiros que logo se esfarelam, ciclovias transformadas em entulhos de pedras, asfalto, troncos deitados com raízes expostas, um número alarmante de miseráveis dormindo pelas ruas. Essa é a Porto Alegre que vejo nos meus dias. Ela está triste. As pessoas também.
“E que no entanto
Me traz encantos
E um pôr-de-Sol me traduz em versos”
Os encantos permanecem nas minhas memórias. São afetivos. Conectam o que sou a tantos lugares que não resistiram ao avanço de prédios que escodem o céu, acinzentam as ruas pois não há frestas para o sol.
Os versos do pôr-do-Sol tornaram-se nebulosos, tomados pela fumaça dos incêndios no Brasil que dificultam respirar e ocultam o show de cores e matizes que tanto identificam a nossa cidade no final do dia.
“De seguir livre muitos caminhos
Arando terras, provando vinhos
De ter ideias de liberdade
De ver amor em todas idades
Nasci chorando, moinhos de vento
Subir no bonde, descer correndo
A boa funda de goiabeira
Jogar bolita, pular fogueira”
Perdemos a liberdade, tememos as ruas, nossos caminhos são tortuosos, erguemos muros, grades, sistemas de segurança. Trocamos a visão do amor em todas as idades pelo temor a qualquer um que se aproxime de nós. Não há crianças brincando nas ruas. Em pouco tempo não teremos mais árvores para que passarinhos construam seus ninhos. Não teremos mais sombras. Sufocaremos e queimaremos no calor emanado pelo concreto e asfalto.
“Sessenta e quatro, sessenta e seis, sessenta e oito um mau tempo talvez
Anos setenta não deu pra ti
E nos oitenta eu não vou me perder por aí"
Os anos sessenta não representam horror para muitos que nutrem a esperança de revivê-los, afinal a família, a propriedade e os costumes valem mais do que qualquer vida humana.
Nos anos setenta vivi minha adolescência. Acreditava na mudança, apostava em uma sociedade mais justa, pensava ser possível construir um mundo melhor.
Levamos mais tempo para nos perder, ou para perceber a teia que vinha sendo construída. Eclodiu no século XXI.
Durante esse período, envelheci. Hoje, tenho desânimo e cansaço. Perdi a força para argumentar. Calo muitas vezes por não ver solo para nada florescer.
Uma cidade que aceita se ver inundada, suas árvores derrubadas, as ruas sujas e descuidadas, a periferia abandonada e não se mobiliza para mudar não está só triste, está derrotada.
Música citada: Horizontes de Flávio Bicca Rocha
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