Unanimidade


Maria Avelina Fuhro Gastal

Unanimidade não existe. Como em tudo que generaliza, há exceção: a tia Nonô.

Ela é a quarta filha daquela verdadeira casa das sete mulheres de uns textos atrás aqui na página.

Falar dela é fácil, poderia encher de adjetivos bons e estaria feito. Mas para quem não a conhece seria vazio. Então optei por contar algumas histórias para que vocês mesmo escolham as melhores palavras para defini-la.

Foi dela a ideia de comprar uma bicicleta de segunda mão para os sobrinhos e levar para a praia do Cassino. Uma bicicleta para cinco, na época. A regra era clara, uma volta na quadra e passava para o outro. E ela se dispunha a ficar ali mediando os conflitos que sempre apareciam. Eu era a mais pateta. Ela aguentou por anos o meu silêncio que só era quebrado com a chegada de minha mãe nos finais de semana e eu solicitava uma conversa em particular. Até hoje rimos muito disso e temos curiosidade em saber o que eu falava. Provavelmente queixas, mas não lembro.

Com uns oito anos, em Pelotas, na mesma bicicleta, ao pedalar trombei com o dedão do pé em uma raiz podre de árvore. Um pedaço ficou embaixo da unha. Lá foi a tia Nonô comigo para o pronto socorro. Fiz um escândalo dos bons. Ela suportou firme, até mesmo quando desloquei a peruca que ela usava, deixando-a dependurada para o lado. A reação dela: muitas risadas. Não foi a única vez da minha tia em pronto socorro conosco durante as férias. Meu irmão tinha o péssimo hábito de colocar o giz de cera dentro do nariz.

O guarda-roupas dela era nosso parque de diversões. Brincávamos de loja, de desfile de miss, usando tudo que encontrávamos pela frente. E, até hoje, não é pouca coisa. Para ela tudo tem significado, então guarda. Quando tive que apresentar um trabalho no colégio sobre evolução histórica, escolhi a moda. Tirei 10. Todo o material usado veio daquele armário mágico.

Nonô, Gô, Gogô, o apelido foi mudando ao longo das gerações, mas a disposição dela nunca alterou. Jogava futebol com o meu filho, usando botas de salto em praças e campinhos. Subiu em trepa-trepa para resgatar minha filha que, depois de alcançar o topo, entrou em pânico e não conseguia descer. Enfrentou veraneios em Xangri-lá em uma casa repleta de adolescentes e algumas crianças. Ficava acordada comigo até a hora de buscar os maiores nas festas. Nos carnavais, acompanhávamos os desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro, enquanto meus filhos estavam nas festas da vida e eu não conseguia dormir até eles estarem de volta em casa.

Joga canastra como ninguém. Mas permitia que minha vó vencesse seguidas vezes usando estratégias não muito honestas. Ai de nós se denunciássemos a Vó Pequena. A resposta da minha tia era sempre a mesma, “a mamãe se enganou”. Minha avó ria um riso sapeca e o jogo continuava.

É madrinha de muitos de nós. Só poderia ser ela a madrinha do meu filho mais velho. Fui desbancada por ela na escolha da dinda do meu sobrinho mais novo. Com ela não dá para competir. Aceito a derrota com honra.

Madrinha de fé. Conseguiu me convencer a fazer uma simpatia quando o Eduardo era bebê e tinha hérnia. Mãe e dinda tinham que costurar um pano, dizendo uma reza, fazendo voltas ao redor do berço. O problema é que o apartamento em que eu morava era minúsculo, o berço ficava no meu quarto. Tínhamos que fazer o “circuito” de joelhos pela minha cama para conseguir dar a volta no berço. Eu costurava, dizia a reza e ria da situação. Ela costurava, dizia a reza, ria da situação e me xingava. Depois, tinha que enterrar os panos costurados em uma porteira onde ele jamais passaria. O problema não era ele não passar, mas sim, onde raios eu acharia uma porteira? Ela resolveu. Está em alguma porteira do Rio Grande do Sul. Se ele passar, tudo bem. Acho que minha falta de seriedade enfraqueceu a simpatia. Eduardo teve que ser operado.

Supersticiosa, não permite que nenhum de nós pegue o saleiro direto da mão de alguém. Tem que largar na mesa e só depois o outro pode pegar. Não lembro o motivo, nem a desgraça que pode ocorrer, mas sempre que o sal é pedido, pensamos nela.

Adora receber a família. Com quase oitenta anos teve a coragem de comprar um novo apartamento e reformar como queria. Sempre tem bolachas Zezé, bombons, chás, bolos, frutas, guaraná e o que você imaginar para recebê-lo. Se não tiver, como mágica aparece. E se sua chegada for para o almoço, a mesa é sempre farta, mas ela cozinhará dúzias de ovos e cortará milhares de tomates para reforçar o almoço.

E, no dia 17 de junho, ao completar 84 anos, aderiu às redes sociais, reuniu todos nós em uma live, desorganizada, bagunçada, com todos falando ao mesmo tempo. O aniversário era dela, mas o presente foi para nós. Estivemos juntos de novo, implicamos um com o outro, cantamos parabéns e celebramos a vida.

Obrigada, tia Nonô, por ser o nosso elo com a tua alegria, disposição e vontade de viver.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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