Maria Avelina Fuhro Gastal
Depois de três facas, uma tesourinha de unhas, uma unha quebrada e o esmalte de outra descascado, consegui acessar a tampa para abrir a garrafa de suco de uva. Tudo com um olhar intrigado do meu neto que repetia ao longo do processo: ─´´E só abrir, vovó.”
Adoro a “pureza da resposta das crianças”. Mal sabem elas que nem sempre é tão fácil fazer o elementar.
Enquanto enfrentava o desafio quase insuperável de retirar um lacre que cobria a tampa da garrafa, crescia minha admiração por aqueles que discutem Inteligência Artificial. Acho até muito digno. Pessoas debatendo os desafios e as ameaças da IA, e, eu, atrapalhada com questões de IP.
No meu caso, IP passa longe de ser Internet Protocol. Limita-se a questões básicas de Inteligência Primária ou Primitiva.
Quando encaro um “Abre Fácil”, entro em pânico. Por mais que tente levantar a maldita abinha que supostamente deveria facilitar a abertura, não consigo. O que deveria ser fácil torna-se irritante. Mantenho a compostura e invisto em nova tentativa até perder as estribeiras, pegar uma faca, apunhalar a embalagem, escalpelar a proteção, sacar o produto de dentro e me livrar da prova de minha inaptidão jogando no lixo seco a maldita embalagem mentirosa.
Há de se ter cuidado ao comprar enxaguante bucal. Alguns vêm em frascos que parecem conter líquido radioativo ou venenoso tal o esquema de segurança empregado nas tampas. Na base delas, entre as nervuras, existem, em lados opostos, dois espaços lisos. Neles devemos colocar os dedos polegar e indicador, pressionar levemente ao mesmo tempo que executamos um movimento de giro com suave pressão e deslocamento de afastamento da base da tampa em direção ao topo. Simples, não? Dois dedos, controle de força, movimentação cadenciada com rumo definido. Faço isso e, a maldita tampa não abre. Me preocupo. Estarei com dificuldades motoras, cognitivas ou ambas? Por sorte, alguém muito antes de mim, com inteligência à época comparada com os gênios de agora, inventou o alicate. Ferramentas mudaram a história. E, também, podem ajudar a modificar o seu hálito.
Meu grande desafio são os manuais de instruções. Já começam desafiadores – Leia com atenção e siga os passos corretamente-, seguido do telefone de Serviço de Atendimento ao Cliente. O presságio é desanimador. O desafio nos move, nos faz avançar e superar obstáculos e limitações. Então, separamos as peças, conforme indicado. Identificamos as pontas A, B, C, D, E e tantas mais do alfabeto quantas forem necessárias para não nos perdermos. Logo, juntamos o vértice da ponta A, ao vértice da ponta C, observando a angulação de 45° necessária para manter o equilíbrio dos vértices adjacentes. Repetimos a operação de A à Z, tendo o cuidado de não acoplar os parafusos nas esferas correspondentes sem antes observar se a curvatura necessária para a manutenção da estrutura está adequada ao limite máximo sugerido pelo fabricante. Sem necessidade de fazer ajustes, podemos começar a torcer os diversos parafusos, observando a sequência de sua colocação, na ordem crescente, sem completar o movimento até que todos estejam com a mesma profundidade de inserção na estrutura. Observada alguma imprecisão, BASTA reiniciar o processo. Minha solução: contrato montadores, pico em pedacinhos os manuais e me controlo para não ligar ao SAC xingando até à quinta geração dos envolvidos na elaboração do maldito manual.
Torço pelas mentes brilhantes que vão além das babaquices cotidianas. Torço para que elas encontrem soluções para os problemas banais dos menos dotados, antes de encontrarem formas de acabar com a humanidade. Enquanto isso, me resigno a ser uma pessoa limitada, mas com capacidade de escrever sem recorrer ao ChatGPT.
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