Maria Avelina Fuhro Gastal
Sou maldosa, invejosa e racista.
Procuro palavras para ferir, dou indiretas tendo como alvo pontos fracos, humilho com intenção. Na maioria das vezes, tento ser civilizada, mas quando escapa o veneno é deliberado. Nem sempre me arrependo na hora. O prazer em machucar alimenta a raiva e me delicio com o sentimento de vingança.
Por muito tempo invejei quem entrava em qualquer loja para comprar a roupa que estava na vitrine e cabia na roupa. Invejo peles lisas, corpos sem flacidez ou celulite, dedos e cílios longos, sobrancelhas bem desenhadas, cabelos fáceis de domar. E mais, elegância, rostos harmônicos, autoconfiança, bons papos, facilidade para se integrar aos ambientes. E ainda, amores correspondidos, casais com anos de história e prazer por estarem juntos, pessoas que não temem em se arriscar para estar com quem querem.
Quando me movo pela maldade ou pela raiva, já disse que tinha feito “negrice”. Para justificar minha inveja, já disse que ela era “branca”. Apesar de toda a vergonha que esta confissão me traz, sou racista.
Meu racismo não admite a execução de um homem negro por asfixia nas ruas de Minneapolis, nem a morte de um menino de cinco anos que só queria a mãe. Quando o racismo se materializa em nomes, rostos e histórias exterminados por atitudes desumanas de policiais ou madames que priorizam unhas e cachorros a uma criança negra, gritamos, nos emocionamos, exigimos justiça. Mas nossa branquitude se cala ao número absurdo de pessoas negras mortas ou vivendo sem condições mínimas de dignidade humana ou possibilidade de ascensão social. Nosso silêncio traz a crença de que eles são os assaltantes que roubarão nossos bens ou vida. Antes eles do que nós.
Alguns enxergam na meritocracia a possibilidade para a construção de uma sociedade melhor, defendendo a ideia de que a competência, o preparo e a vontade devem ser as diretrizes para o crescimento. Racistas. Há vontade de viver como pessoas em todos, mas as condições para uma disputa foram ditadas desde o início da nossa história e as pessoas negras sempre estiveram excluídas. Meritocracia sem igualdade de possibilidades é a manutenção de todas as mazelas vividas por aqueles que não tem acesso à educação de qualidade, nem reconhecimento da sua cultura como saber histórico.
Trazemos o racismo na nossa estrutura. Naturalizamos e romantizamos conceitos e ideias que sempre segregaram a pessoa negra na nossa sociedade. Saudamos a maloca, cantamos o gingado das cadeiras das mulheres negras, exaltamos o pivete negro que faz malabarismos nas sinaleiras e voltamos em nossos carros para apartamentos e casas confortáveis, cercados por grades, sendo ou acompanhados por mulheres brancas, recatadas e do lar. Pelo menos na aparência.
Fui gorda a maior parte da minha vida. Os olhares em mim aumentavam meu mal estar. Denunciavam que eu fugia do padrão esperado. Não temos do seu número, para ficar bem nesta roupa tem que ser magra, já tentou a dieta do abacaxi? Frases ditas e repetidas que criavam em mim buracos e a certeza do lixo que era. Hoje, visto tamanho P, calças 40 ou 42, mas me enxergo enorme. Meu pensamento me reconhece gorda, confirma que não tenho atrativos e faz com que eu tenha que travar uma luta constante para reconstruir minha imagem.
Imaginem séculos de desvalorização, de afirmação de superioridade de uma aparência que traga lábios finos, nariz estreito, pele alva, no máximo dourada pelo sol, cabelos macios, lisos e sedosos. Ou um país que se construiu narrando as contribuições dos povos europeus na construção de nossos saberes, cultura e habilidades artísticas, enquanto classifica “os negros” como preguiçosos, indolentes, selvagens, incapazes de renunciar a crenças primitivas para absorver as verdades civilizadas. Essa é a estrutura da nossa narrativa histórica. Como brancos, classe média, descendentes de europeus trazemos resquícios, não tão poucos, dessa narrativa. Somos racistas por formação.
Somos perversos. Transformamos nosso discurso em defesa de um país não racista, enquanto agimos no cotidiano para garantir as diferenças. Somos ardilosos. Tão competentes na estratégia que as pessoas negras passam a vida acreditando que o errado está nelas. Antes de se perceberem como grupo segregado por mecanismos vis de uma sociedade perversa, sentem-se deslocados por não terem “a cor de pele certa, o cabelo certo, a beleza convencionada”. Garantimos o sentimento de inferioridade como forma de postergar a consciência de injustiça social.
Continuamos senhores de escravos.
Dói me perceber racista. Dói admitir que também coloquei Miguel no elevador de serviço, apertei o 9º andar e o joguei para a morte. Minha dor é muito menor do que a da mãe dele, muito menor do que a de todas as pessoas negras que são humilhadas, massacradas e assassinadas no Brasil. Mas admito que carrego essa responsabilidade. Não há abraço, pedidos de desculpas que alivie tanto sofrimento. A vergonha por tudo está em mim, mas a dor da perda, da indiferença, da nossa perversidade está nas milhões de famílias de tantos Miguéis que matamos há séculos.
Sou racista, com muita vergonha. Não quero apenas deixar de ser. Quero me tornar antirracista. Tenho muito a aprender.
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