As falas, o erro, a maldade


Maria Avelina Fuhro Gastal

O título pode sugerir uma fábula. Antes fosse. Mesmo que carregasse uma lição de moral, estaríamos no terreno da ficção. Precisamos tanto de sonhos e esperança. Mas a realidade nos atinge. Não há trégua.

Quando atingimos 1179 mortes em um dia pela COVID-19, duas falas esbofeteiam a dor.

A primeira, dita pelo atual presidente do Brasil, vem em forma de rima. Pobre. Rasa. “Quem é de direita toma cloroquina, de esquerda Tubaína”.

A segunda, do ex-presidente por dois mandatos, vem em forma de retórica. “ainda bem que natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus...”

Lamentáveis.

Tomei conhecimento das duas pelas redes sociais. Não tinha a menor ideia do que era tubaína. Passei a ver memes com rimas que iam além. Lembravam da cocaína na comitiva presidencial. Tudo me desagradava. Um presidente não pode ideologizar a dor, desrespeitar o sofrimento, ser insensível às mortes. Mas ainda desconhecia o significado de tubaína.

Agradecer a existência de um monstro que aniquila famílias, colapsa os sistemas de saúde, mata médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem, que paralisa o mundo, aumenta a fome é inaceitável.

A primeira foi seguida por um decreto alterando protocolo de tratamento da COVID-19, sem nenhum aval da comunidade científica.

A segunda, pelo reconhecimento do erro e um pedido público de desculpas.

Decreto não salva vidas. Investimento na ciência sim.

Pedido de desculpas não aplaca o sofrimento de quem perdeu o emprego, familiares, amigos.

Se a primeira nega a necessidade de uma política de saúde pública séria e comprometida, a segunda abafou o que se seguia a ela na defesa do SUS.

Mas elas são incomparáveis.

Tubaína não foi erro. Foi escolha.

Tubaína é um tipo de refrigerante regional, típico do interior do estado de São Paulo, tradicionalmente à base de guaraná, com flavorizantes e aromatizantes de tutti-frutti. O termo também é utilizado para quaisquer outros refrigerantes de produção regional em pequena escala, em especial aqueles que são vendidos em garrafas de vidro e frascos de cerveja (a mesma da cerveja tradicional), embora hoje sejam mais utilizadas garrafas feitas em PET.

O refrigerante citado pelo presidente, a Tubaína, foi criado no interior do estado de São Paulo e costuma ser visto como item de consumo de pessoas de baixa renda.

Surgiu nas redes a informação que o termo se referia a um tipo de tortura por afogamento. Não encontrei confirmação, pelo contrário. Nas pesquisas que fiz afirmam não haver nos registros históricos qualquer referência do termo em técnicas de tortura.

Mas em uma país onde a fome assola, com saneamento básico insuficiente, enorme desigualdade social usar como referência, em tom de deboche, um item de consumo de pessoas de baixa renda é esbofetear o povo, desrespeitar a nação, desonrar o cargo. É uma forma de tortura prolongada, onde o prazer está em ver o sofrimento.

Não dá para aceitar qualquer fala que não considere o tanto de dor e perda que todos vivem. Muito menos aquelas que carregam a maldade como forma de se relacionar com os outros. Precisamos saber diferenciá-las.





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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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