Maria Avelina Fuhro Gastal
Elas têm o mesmo nome, Alice. Entre elas, quatro anos e meio de diferença.
Compartilham roupas e brinquedos que já foram da Alice mais velha e chegaram para a mais nova em forma de doação. Moram em Porto Alegre, em bairros não muito distantes, Petrópolis e Vila Bom Jesus. Duas meninas, quase vizinhas, que vivem em mundos diferentes.
A Alice de Petrópolis passa as férias em Atlândida, Santa Catarina, ou em resorts do Nordeste; os feriados prolongados em Gramado ou no Rio de Janeiro, e, antes dos seis anos, já foi a Nova York, Chicago, Chile, Disney. Quer muito ir à Austrália, sabe-se lá de onde veio a ideia. A Alice da Bom Jesus ainda não sabe o que são férias ou feriados prolongados. Quando souber, será apenas um período para ficar mais tempo em casa.
As duas estão em quarentena. Uma em um apartamento amplo, com um quarto só para ela e outro para os brinquedos, a outra em uma casa pequena de três cômodos que abriga os pais, a avó, os irmãos e alguns brinquedos doados.
Cinema, teatro, clube, restaurante, shopping, parques, museus ficaram para depois. O depois de uma delas é quando for possível ir a lugares públicos em segurança contra o coronavírus, o da outra não tem data, nem prazo, nem certeza de que acontecerá.
As duas têm o riso espontâneo das crianças, o mundo de fantasia que criam e a energia de quem tem uma vida para descobrir. A Alice de Petrópolis tem pela frente um mundo que se abre para ela, a da Bom Jesus encontrará portas fechadas.
Os antecedentes de uma vieram como colonos, aventureiros, imigrantes, desbravadores, os da outra foram trazidos em porões de navios negreiros.
Em 132 anos quase nada fizemos para dar à Alice da Bom Jesus as mesmas oportunidades que tem a Alice de Petrópolis. Mudamos sem mudar. A abolição da escravatura jogou homens, mulheres, crianças em um mundo que não os acolheu. Continuam escravizados. Deixaram as senzalas. Empurramos todos para as vilas, guetos, favelas, periferia. Vamos trocando os nomes em busca do politicamente correto, em vez de mudar as políticas para construir o humanamente digno.
Nunca foram escravos, sempre escravizados. E nós ainda agimos como feitores.
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