Maria Avelina Fuhro Gastal
Para quem escreve, a verossimilhança é de tirar o sono. Não basta que a história ficcional esteja baseada na realidade, ela precisa convencer o leitor que o que está sendo contado é possível.
Histórias de amor que enfrentam encontros e desencontros, pessoas que sofrem inúmeras perdas, segredos familiares perpetuando-se através de gerações e condenando os membros a repetições, abusos emocionais, físicos ou sexuais, abandono, assassinatos, feminicídios, comportamentos aditivos, conflitos familiares, geracionais e tantos outros temas fazem parte da narrativa de nossa vida, como protagonistas, coadjuvantes, espectadores ou simples curiosos. Mas em um conto, novela ou romance precisamos ir além do vivido e criar coerência ficcional que as torne críveis.
A exigência com esse cuidado estende-se à construção do ambiente, cenas, diálogos, linguagem, voz de cada personagem. E, mira também, o leitor alvo da narrativa.
Se eu estiver escrevendo para brasileiros, posso usar a expressão “esgoto a céu aberto” que, apesar de absurdo total, entendemos e conseguimos visualizar as condições do espaço descrito. Se formos traduzidos para lançamento, digamos, na Suécia, teremos que reescrever o cenário. Não o mudar, mas torná-lo possível de ser visualizado por quem não faz ideia do que sejam as reais condições de vida da população da periferia de nossas cidades.
Imaginem o trabalho de construção ficcional de um escritor que tivesse imaginado há pouco tempo, antes de fevereiro de 2020, uma história onde um vírus, em uma cidade do interior do continente asiático, atingisse maciçamente a população, apresentando sintomas de gripe, e em dias, ou até mesmo horas, provocasse uma grave crise respiratória, provocando mortes por falência dos pulmões, com grande poder de transmissão e sem responder a nenhum tratamento conhecido pela ciência em pleno Século XXI. Se fosse só isso, já exigiria uma trama cuidadosamente construída. Acrescente ao enredo inicial, a contaminação mundial em menos de três meses, a incapacidade do sistema de saúde em atender a demanda, líderes mundiais contaminados, economia paralisada pela necessidade de isolamento social, Nova York vazia, aviões em terra, escolas, universidades, comércio fechados, cadáveres empilhados, ou pelas ruas até serem recolhidos em câmaras frigoríficas espalhadas pelas cidades. Para finalizar, nenhuma perspectiva de tempo de duração da pandemia, sem ideia das consequências mundiais econômicas e sociais ou possibilidade de sequelas e reinfecções pelos indivíduos. Se com tudo isso o autor conseguisse construir uma história em que acreditássemos, teria feito a obra da sua vida. Referência para narrativas de distopia.
A realidade é muita mais dura e cruel do que qualquer ficção. Vivemos o que acontece conosco como surreal porque nos ameaça, nos joga em um mundo que desconhecemos e para o qual não temos recursos imediatos para lançar mão. Qualificamos de inimaginável pois vai além do que podemos compreender ou aceitar. Inacreditável porque nos custa reconhecer que não temos mais a vida que acreditávamos ter e que se desfez em pouco tempo. Fomos pegos de surpresa. Reagimos negando a capilaridade que o coronavírus atingiria. Tivemos pouco tempo para assimilar o que estava acontecendo e entender o que viria a acontecer.
Hoje, 24 de abril de 2020, li e ouvi as palavras surreal, inimaginável e inacreditável por diversas vezes ao longo do dia. O motivo não era a pandemia. Terminamos a manhã com a coletiva do então Ministro da Justiça e Segurança, Sérgio Moro, apresentando sua demissão à imprensa e à Nação, com graves denúncias da conduta do presidente (me nego a citar o nome), ferindo princípios republicanos e democráticos.
Sinceramente, não sei onde a qualificação de surreal, inimaginável ou inacreditável se aplicam. Se for com relação à postura do Moro, até posso tentar entender. Se for referente à conduta do presidente nas denúncias apresentadas, não há a menor possibilidade de as palavras surreal, inimaginável ou inacreditável serem usadas. Ele nunca escondeu o discurso, sempre defendeu a ditadura, a tortura. Enalteceu Ustra. Humilhou as mulheres, os desvalidos, os trabalhadores, os indígenas. Desrespeitou os Poderes, as instituições democráticas. Confessou manter o apartamento funcional para comer gente. Apartamento pago por dinheiro público. Fugiu aos debates. Nunca ouviu ninguém além dos filhos e do Olavo de Carvalho. Sempre falou como miliciano. Misógino, racista, preconceituoso, raso, despreparado. Tudo isso durante a campanha, antes da facada salvadora. Após eleito, sempre agiu de forma coerente a sua escolha em desrespeitar pessoas e instituições. Então, onde está a surpresa? O surreal? O inimaginável? O inacreditável?
Eu já me desiludi com o meu voto, já sofri pelo que acreditava e vi desmoronar. Mas sempre votei com base nos meus valores e visão de sociedade.
Escuto o tempo todo, votei nele para não votar no PT, não tinha escolha. Sempre há escolha. O voto manifesta o que desejas, acreditas, esperas. Se nenhum candidato corresponde a isso, podes escolher o voto em branco ou nulo. É a manifestação do teu desacordo, da tua inconformidade com as opções. Se decides votar em alguém, é porque há algo nele que repercute naquilo que pensas. Não diga que foste enganado. Ele nunca se escondeu. Mostrou a cara para fazer o trabalho sujo que muitos da sociedade esperavam que fosse feito.
Para mim, e para muitos outros, o surreal, o inacreditável, o inimaginável é ter que conviver com a COVID-19 e o COVIL-17 ao mesmo tempo. É desumanidade ao extremo. Para tantos outros, guardem sua inconformidade para a pandemia, porque do resto vocês sabiam e escolheram mesmo assim.
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