Conflitos em tempos de isolamento


Maria Avelina Fuhro Gastal

Fechando trinta dias de confinamento, já era de se esperar a elevação no número de conflitos.

Os primeiros se manifestaram ainda na primeira quinzena. Fui me fazendo de tonta e empurrando com a barriga. Um deixa para lá, um faz de conta que não ouvi, até o extremo de não é comigo.

Quando a diarista começou a desqualificar a manicure, ganhou o apoio da cozinheira. Em dupla, elas alegavam que fazer as unhas era pura necessidade burguesa. Nenhum esmalte duraria. Unhas quebradiças só tomam jeito cortando bem curtinhas, deixando livres para respirar, sem nem mesmo uma base. A manicure não entrava na discussão, mas sussurrava, que coisa horrorosa. Pelo menos tirar um pouco da cutícula, lixar, dar uma polida. Eu olhava para as mãos, de forma discreta, para não atiçar o conflito. Aproveitei a noite sem ninguém na volta e chamei a manicure. Vieram duas. A que tratou da mão esquerda, sem queixas. Já a responsável por dar um jeito na mão direita, nunca mais. O castigo maior foi perceber, na manhã seguinte, os risos e as chacotas da diarista e da cozinheira toda vez que eu recolhia a mão direita, colocava embaixo d’água já que não podia levar à boca, e esperava passar a ardência provocada por temperos e produtos químicos naquilo que havia sobrado como lembrança de pele ao redor das unhas.

Dei folga por tempo indeterminado à manicure. A ambas. Não tem sentido ter somente unhas da mão esquerda dentro do mínimo aceitável.

Derrotado o inimigo comum, diarista e cozinheira passaram ao ataque mútuo. Argumentos e lógica não faltavam. Se à diarista cabia a limpeza da casa, seria dela também a faxina da cozinha. O contra ataque foi imediato. Cozinha é território de quem prepara a comida. Sujou, limpou. Sim, mas já limpo alfaces feito louca, retiro gorduras invisíveis das carnes, esfrego pratos e formas onde tudo fica grudado pela proibição expressa de untar. Já que faz tudo isso, aproveita quando lavar a louça, limpa o fogão e esfrega o piso. Esfregar não é comigo. Cozinheira não ajoelha. Até agora não chegaram a um acordo. Parece que depende do humor delas no dia para esfregar, ajoelhar. Ignoro.

Quem não ignora o dilema delas é a arrumadeira. Sempre trabalhou em silêncio, no máximo com um pagode ao fundo. Não tem muito o que fazer. Mas já a peguei largando comentários venenosos. Decidam logo essa bobagem de quem faz o que. Não sei do que reclamam. Já pensaram o que é manter a ordem de uma casa onde todos os rótulos devem ficar voltados para a frente, todos os enfeites na posição exata exigida pelo olhar daquela louca, o lençol não pode ter rugas e o cobre leito deve descer na mesma proporção pelos dois lados da cama? Por sorte, o refil do etiquetador estava no fim, ou acabaria tendo que trocar todas as etiquetas. A cozinheira foi seca. Não reclama, ou dou um jeito de fazer cair pra ti esta história de limpar friso de tampa de panela com palitos de dentes e nervura de desentupidor de pia com escovinha.

Pelo menos a lavadeira trabalha em silêncio. A única frase que ouvi dela até hoje foi: — lavo, mas não passo. A roupa está sempre em dia. Descobri que alisar em cima da cama, e dobrar da forma de sempre, ajuda a disfarçar o amarrotado. Passadeiras estão em falta.

Tenho morando comigo uma senhora de longos cabelos crespos, ruivos-grisalhos. Ela tenta contemporizar. Relaxa, minha filha. Põe as pernas para cima, aprende a bordar, faz palavras cruzadas, assiste a novelas. Cuido bem dela, pois está na idade de risco. Guardo os conselhos para o futuro. Por enquanto, quero mais.

Surtaria se ainda tivesse que, no meio dessa bagunça, lidar com babá e professoras. Não tenho. Vantagem merecida para quem é lembrado todo o dia que é velho.

Busquei opções para me desvencilhar dessa confusão entre diarista, cozinheira, manicure, lavadeira, copeira. Poderia me mandar embora ou fugir de casa. Descartei. O mundo está fechado. Ou chutar o balde da dieta e exercícios diários, deixar a barriga se avolumar e ter mais superfície para continuar empurrando as discussões para lá. Obesidade aumentaria meu risco. Passar a tomar vinho, ficar tonta sem precisar fazer de conta. Com o histórico da minha família, melhor não arriscar. Descartadas. Ler. Não está funcionando. E a culpa nem é de todas elas. Fica difícil me concentrar nas histórias, tendo tantas vozes no Poder vomitando asneiras em cima de nós. Sem máscaras. Nunca usaram. Sempre foram abomináveis. Mas agora o que cospem, mata.

Encontro a paz na frente de uma página em branco. Nela vou colocando emoções. Isso me ajuda a acreditar que vai passar. E quando passar, continuarei convivendo com todas. Do caos dá para nascer um convívio melhor.




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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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