Contrastes e trastes humanos


Maria Avelina Fuhro Gastal

Chegamos ao último dia de março com a sensação de que ele durou uma eternidade. O primeiro dia de abril só será a continuação de um período que parece não ter fim.

Não estamos vivendo em um eterno domingo. Falta a perspectiva de uma segunda-feira. Estamos em um tempo suspenso, envolvidos em uma luta para sobreviver em um mar revolto, sem um capitão que possa exercer o papel que lhe cabe. No barco que ocupamos não há lugar para todos. Alguns não hesitam em chutar para fora aqueles que nunca tiveram a chance de aprender a nadar. Passaram a vida com a cabeça para fora d’água, debatendo-se para não afundar. Agora, alguém forçará a cabeça deles para dentro. Morram rápido para que possamos voltar para as nossas vidas.

Duas frases ao longo do mês de março me acompanharão para sempre. Tão antagônicas, quanto complementares. Trazem entre si o contraste que vivemos e os trastes que podemos ser.

“Podemos não ter muito, mas tudo o que temos dividimos entre todos.”

“Eu pago o teu salário.”

A primeira ouvi em Havana, de um motorista de taxi. A segunda li fixada em um dos carros que participava da carreata pelo fim do isolamento social para conter o avanço da Covid-19.

Esqueçam, por um tempo, pelo menos até o fim deste texto, as palavras petralhas, petezada, bolsomínios, comunistas e fascistas. Não é disso que estou falando.

Falo de pessoas e da visão que temos do outro. Falo de empatia e solidariedade. Falo de coesão e proteção à vida. Falo de respeito e dignidade.

Todos queremos nossas vidas de volta. As vidas que temos têm um abismo de diferenças. Mas há coisas em comum. Todos queremos continuar vivos. Todos queremos que nossos afetos continuem vivos. Todos tememos a ameaça que vivemos. Nem todos vão ter seus desejos atendidos. Perderemos familiares, amigos, conhecidos. Ou eles nos perderão. Não sabemos. Mas não podemos perder a nobreza de sermos humanos. Se por um tempo tivermos que viver com muito menos, ainda assim teremos lucrado ficando vivos e não empurrando ninguém para a morte.

Existe um sem número de iniciativas para auxiliar quem já vive em situação absurda, agravada pela ameaça do Coronavírus. Cada um de nós pode buscar aquela que entender ser a mais apropriada para contribuir. Estamos, e devemos permanecer, em casa, mas não estamos isolados do mundo, a não ser que tenhamos optado por isso.

O que seremos durante este período tão assustador é escolha nossa. Quem somos na vida é escolha nossa. Eu escolho não ser um traste.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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