Meus onze anos


Maria Avelina Fuhro Gastal

Das lembranças que tenho, não consigo precisar quais se referem aos meus onze anos.

Parece que dos dez aos quatorze anos as memórias se juntam em um único bloco. Não me via mais criança, mas, com certeza não passava de uma menina. Mesmo sem a sombra dos bananais ou sem laranjais acima de mim, as tardes eram fagueiras. Dividiam-se entre fazer o tema de casa e inventar todo o resto.

Meu pai tinha uma coleção de LPs com trilha sonora de filmes. Bastava colocar no toca disco para reproduzirmos cenas cinematográficas ou inventar enredos embalados pela orquestra do Ray Conniff.

No verão, mergulhar nas águas das piscinas do Petrópole Tênis Clube. Afinal, já não precisava me manter na piscina média, podia me arriscar na olímpica. Só nunca superei o medo de me lançar da plataforma.

Lembro, ainda, que, nessa mesma época, meu corpo dava os primeiros sinais da mudança que aconteceria. Blusas largas e ombros curvados disfarçavam os seios que teimavam em despontar.

Meu quarto ainda tinha bonecas, ursinhos e uma infinidade de badulaques da infância que dividiam o espaço com alguns posters de artistas de cinema ou cartazes de filmes e um quadro de tapeçaria feito por mim. Era o desenho de uma menina, em tons de rosa e branco, com flores na mão.

"Como são belos os dias do despontar da existência!
Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar – é lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado
A vida – um hino d’amor!"

Qual a beleza dos dias para a menina de 11 anos estuprada?

Terá alma preservada?

Sentirá o perfume das flores ou a única lembrança será a do cheiro da pele do estuprador?

Não há mar, não há céu, somente um ventre que cresce lembrando a cada momento a violência a que foi submetida.

Sem sonho dourado, apena o desejo de interromper uma gestação. Interromper a agressão, a violência. Tirar de si o que não lhe pertence. Recuperar o que restou para prosseguir. A infância já foi aniquilada. A meninice, tripudiada. O corpo violentado, a psique golpeada. Quanto de sofrimento essa menina terá que suportar?

De um hino d’amor, a vida passou a ser um hino de horror. Um homem, o estuprador, uma juíza, a violentadora, não enxergam a criança/menina, regem seus atos por um instinto agressor, ignoram a vítima, perpetuam o crime.

"Em vez das mágoas de agora
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias."

Afasta-se a menina da mãe para impedir que o aborto seja levado a termo. Preserva-se um feto, gerado na violência contra uma menina, sacrifica-se a criança violentada.

Passamos dos limites. O que havia de humano em nós, se perdeu.

Dos meus onze anos, não tenho memória clara. Os dessa menina, se sobreviver a tudo isso, serão memórias de dor.




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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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