Ressignificados


Maria Avelina Fuhro Gastal

Há quase um ano e meio tenho utilizado o espaço que chamo de escritório regularmente. É nele que escrevo, assisto às aulas dos cursos on line. No final da tarde, sou obrigada a fechar venezianas ou a cortina para que a luminosidade do pôr-do-sol não reflita na tela. Resido a uma quadra, a três avenidas e a um parque do Guaíba. Não seria de se estranhar o reflexo da luz solar ao final do dia, exceto se considerarmos que moro no 2º andar e meu apartamento tem frente Norte e lateral Leste.

Era noite, nem lembro se o dia havia sido ensolarado nem mesmo se tinha estado no escritório ao final da tarde, quando um pensamento encontrou uma fresta e, do nada, gritou a dúvida: o sol se põe do outro lado. Seguiram-se dias nublados, esqueci ou acomodei a dúvida, fez-se o sol, esqueci de acompanhar o entardecer. Havia trocado o pensamento pela inquietação de saber-me habitando há tanto tempo a mim mesma e questionando quantas narrativas absorvidas como verdades me impediam de entender o que realmente acontecia.

Enquanto mergulhava em reflexões, os dias se seguiram. Em um deles, como se fosse o tempo necessário para o entendimento, acompanhei o entardecer da janela do escritório voltada para o Leste. A luz inundava a peça, refletia na tela e nos vidros dos quadros, devolvida pela grande janela envidraçada de um apartamento em um prédio que ultrapassa a altura do telhado da casa que fica na frente da minha janela. O vão existente entre os apartamentos de frente e de fundos do meu edifício permite que as cores do sol se pondo no Guaíba transpassem, sem barreiras de concreto, um espaço urbano onde nesgas de verde, céu e luz são raridade e encontrem um vidro espelhado que compartilhe o tanto de luz que eu não teria acesso sem ele.

Foram 6 anos até que eu percebesse que o incômodo do final do dia era na realidade uma dádiva. Quando eu pensava que mais nada poderia me surpreender na descoberta, percebi que tudo aconteceu no mesmo período em que começo o processo de desligamento após 11 anos de análise. Medo, insegurança, incertezas perderam a força pois sei que sou capaz de observar e buscar respostas ao que está incorporado a minha vida sem questionamentos. Nada é definitivo, há sempre novos olhares, novas dúvidas e consequentes buscas. Tudo pode ser ressignificado ao seu tempo.

Descobri no mesmo prédio, uma outra janela com vidrinhos coloridos que recebem beija-flores durante o dia. Vê-los no voo parado, cheio de vida, torna o inusitado do pôr-do-sol apenas mais um elemento de surpresa. Parafraseando o Poeta, eles passarão, nós passarinhos. Enquanto batermos nossas asas, estaremos voando, mesmo que nos pensem parados. E, à noite, a janela enche-se de luzinhas espalhadas em cordão. Duas janelas, tanta vida e tantas possibilidades.

Uma única vida, tantas janelas e inúmeras possibilidades.

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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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