Segundas primeira vez


Maria Avelina Fuhro Gastal

A partir de certa idade a sensação experimentada ao viver algo pela primeira vez é quase inexistente. As viagens a lugares há muito sonhados preenchem esse vazio. Em tempo de confinamento elas não existem, por outro lado coisas que nos eram corriqueiras ganham outro sentido.

A primeira vez que saí de casa foi cerca de vinte e cinco dias após ter chegado de Cuba no dia 18 de março. Cumprida a quarentena pós viagem, acrescida do tempo em confinamento, tinha que tomar a vacina contra a gripe. As máscaras encomendadas não tinham chegado. Sair sem uma estava fora de cogitação, como ainda está. Peguei dois panos perfex, amarrei as pontas com fita mimosa dourada (a única que eu tinha em casa), deixei as tiras longas, amarrei por baixo dos cabelos. Charme acrescido de uma total incapacidade de respirar, ou enxergar, já que os óculos embaçavam o tempo todo. Caminhei até a farmácia a umas quatro quadras da minha casa em um caminho em zigzag que o transformou em umas oito quadras para ir e mais oito para voltar. Apesar do medo de contágio e do modelito lamentável, estar na rua, caminhar entre árvores que começavam a receber o outono, me deu sensação de vida. Nas mesmas ruas que percorria inúmeras vezes, experimentei o novo.

Depois desse momento de liberdade condicional e vigiada, voltei para o confinamento por meses, acompanhada por baldes, panos, vassouras, inúmeras alfaces para higienizar nas semanas que se empilharam sem fim.

Em outubro, por ordem médica, inquestionável já que veio do meu filho, temendo por minha saúde mental, o retorno às caminhadas. Já com máscaras que não se destacam pela originalidade nem pelo ridículo, recomecei a contar passos e gasto calórico. Caminhar faz parte da minha rotina há quase trinta anos. Muitas vezes, fui por obrigação. Agora, a cada dia que visto bermuda, camiseta e tênis, percebo como possibilidade de me manter inteira. Fixo meu olhar nos detalhes do bairro, das ruas, do parque. Até incorporei fones de ouvido com músicas cuidadosamente selecionadas e escolhidas conforme meu estado de espírito do dia. Carpe diem alcançou o verdadeiro significado em mim. Só me entristece ver a maioria dos sorrisos tapados, torço para que não apagados.

Quem convive comigo sabe da minha aversão a supermercado. É tanta que sempre foi motivo de desavenças com os filhos. Meu sinalizador da necessidade de ir ao super era o último rolo de papel higiênico no armário. Quase sempre, a geladeira esvaziava antes, sobrando apenas água, alguns vegetais, e carne congelada, quando muito. Em novembro, esporadicamente, em horários sem movimento, retomei as idas às compras. Virou parque de diversões, sem a permanência prolongada, claro. Percorrer corredores, escolher frutas, verduras e legumes, optar por marcas específicas, encontrar novidades, se transformou em liberdade. E olha que tenho vários rolos de papel higiênico no armário.

Passei anos sonhando com a possibilidade de usar apenas tênis, legging, camiseta. No dia da live para lançamento do livro Ecos e Sussurros, abri as portas do roupeiro e escolhi, com prazer, roupa de gente com vida além de casa para usar. Entrar, com folga, na calça jeans guardada há sete meses, escolher uma blusa com detalhes na gola e nos botões, calçar uma sapatilha, soltar os cabelos, maquiar os olhos, passar batom nos lábios, e ver no espelho alguém que eu já nem lembrava, me fez perceber que quero poder alternar escolhas, experimentar o novo, não apenas repetir dias iguais.

E, na última sexta-feira, depois de sete meses e nove dias, dirigi. Superada a dúvida inicial, pois não lembrava em qual posição a alavanca deveria estar para ligar o carro, busquei o controle remoto no console para abrir o portão da garagem. A falta de prática recente no movimento, fez com que o controle voasse da minha mão, girasse no ar na minha frente, e caísse em um vão entre o banco do carona e o calombo que separa os dois bancos da frente. Desliga o carro, mete a mão na fresta, os dedos sentem o controle, mas não há espaço para manobras. Desço do carro, faço a volta, abro a porta traseira do lado do carona, tento avistar o controle. Sem chance. Deito parte do corpo no banco traseiro, com as pernas para fora do carro, pés abanando no ar, estico o braço direito, quase dou mau jeito no pescoço, alcanço a maldita pecinha que criou asas e aterrissou no lugar de mais difícil acesso em um espaço reduzido, consigo pegá-la, saio do carro, me recomponho e, sendo o meu portão absolutamente vazado, percebo uma pequena plateia de guardadores de carros assistindo ao espetáculo. Perder a pose, jamais. Bato com as mãos nas pernas para espantar poeira e vergonha. Contorno o carro, sento no meu lugar de origem, dou a partida, abro o portão e saio senhora de mim. Considerando o começo, aumentei minha atenção. Dirigi umas três quadras pensando em todos os movimentos necessários, exatamente como fazia aos dezoito anos. A diferença é que não precisava me preocupar com as marchas. Três quadras de dezoito anos. Há tempos não tinha a sensação de ser tão jovem. Fiquem tranquilos. Fui e voltei sem danos a terceiros, ao carro ou a mim própria.

Já que não tem jeito, que este período de confinamento, isolamento, distanciamento me sirva como aprendizado para ressignificar situações, momentos, vivências, pessoas. Desligar o automático e reencontrar o prazer e a alegria nas experiências cotidianas de vida. São elas as que mais tenho, viagens são esporádicas, primeiras vezes cada vez mais raras. Então, que o prazer e o encantamento estejam nas segundas, terceiras, quartas ou nas tantas quantas forem as vezes vividas.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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