Janela fechada


Maria Avelina Fuhro Gastal

A temperatura era amena. A intensidade do sol prometia primavera em pleno outono. A vida encontrava uma brecha para se fazer presente depois de tantas ameaças, por vezes cumpridas, de ventos fortes, chuvas intensas e alagamentos.

Retornava para casa perdida em suas lembranças. Ao chegar, abriu a caixa de correspondência e recolheu todos os boletos e propagandas que lá estavam. Largou-os em cima do aparador. Não permitiria que as obrigações do cotidiano invadissem um dia tão perfeito. As contas esperariam até a manhã seguinte.

Acordou, recolheu o jornal e as notícias a trouxeram de volta à realidade. Melhor encarar a correspondência. Entre contas de luz, água, telefone e propagandas inúteis, um envelope chamou sua atenção. Era azul, em papel texturizado, podia sentir as nervuras, e seu nome estava manuscrito, com caneta de escrita fina em uma caligrafia impecável. Virou, mas não havia remetente. Abriu curiosa, pois há anos não recebia nenhuma carta, nem mesmo cartão de Natal ou aniversário.

Leu, releu, tentando entender o que estava escrito. Não que estivesse mal escrito, pelo contrário, nem que estivesse em outra língua, era em português mesmo, mas dizia apenas: “Preciso falar com você. Posso mudar a sua vida. Tenho o que estás procurando.” Nada mais, nenhuma assinatura, nenhum nome, nada que pudesse identificar quem tinha aquilo que ela procurava. Indagou-se sobre o que procurava. Como alguém podia ter a resposta para algo que nem mesmo ela sabia do que se tratava? Guardou o envelope com a carta e, por diversas vezes, a releu ao longo do dia e nos seguintes. A cada vez, inúmeros pensamentos sobre o que poderia estar precisando a intranquilizavam.

Durante aquela semana ficou atenta a todos que a rodeavam com a esperança de reconhecer um sinal que identificasse o autor da carta. Não lhe parecia que nenhuma das pessoas com quem cruzava tivesse aquilo que estava procurando, seja lá o que fosse. Aos poucos a carta perdeu importância, embora nunca tivesse aberto a caixa de correspondência com tanta frequência.

Uma tarde estava lá, outro envelope azul, igual, com caligrafia perfeita. Abriu o envelope com pressa em busca de um nome, mas só encontrou um texto curto, mas mais direto: “Logo estarei pronto para falar com você. Aguarde meu telefonema.” Além de ter o que ela procurava, sabia seu nome, endereço e telefone. Ansiedade e medo. Percebeu que não havia selo .Estaria correndo risco? Teve dificuldades para dormir e no dia seguinte cancelou seus compromissos, decidida a ficar em casa, esperando o telefone tocar. E como tocou! Parecia que todos os gerentes de bancos e operadores de telemarketing tinham escolhido aquele dia para falar com ela. Todos, menos o autor da carta. Imaginava que fosse um homem. O som do telefone passou a ter o efeito de uma droga excitante em seu corpo. Algo irritante ganhou nova dimensão.

O telefone toca e ouve uma voz, masculina, que não identifica

- Clara?

Seu coração para, ou dispara, já não sabe. É ele.

- Recebeste minhas cartas?

- Sim, responde hesitante.

Com voz aveludada e sedutora ele diz: “estamos lançando um empreendimento imobiliário perfeito para você. Clientes especiais foram selecionados para conhecê-lo em primeira mão, como convidados... “

Ela não ouve mais. Só escuta a si mesma tentando encontrar resposta para o que procura. Aquela carta havia escancarado uma janela. Está em risco.

Deixe um recado para a autora

voltar

Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

Clique aqui para seguir esta escritora


Pageviews desde agosto de 2020: 254736

Site desenvolvido pela Editora Metamorfose