Conversa de uma madrugada de sábado


Maria Avelina Fuhro Gastal

Faltavam doze minutos quando me dei conta que logo seria dia 20 de janeiro. Não que eu só lembre de ti neste dia, pelo contrário, mas me dei conta que seriam 31 anos sem a tua presença.

Tenho agora cinco anos a mais do que tinhas ao adoecer e quatro a mais do que tinhas ao morrer. Isso me faz pensar o quanto deve ter sido assustador pensares que tudo estava chegando ao fim. Foi para nós.

Em três décadas acontecem muitas coisas. Teus netos cresceram, até mesmo aqueles que não chegaste a conhecer, a Alessandra e o Pedro Henrique, são, hoje, adultos. Terias muito orgulho deles. Quatro já estão formados, são profissionais responsáveis e reconhecidos em suas áreas de atuação. O caçulinha, que chamamos de PH, cursa a faculdade de Economia e é empreendedor. Acreditas que é sócio de uma empresa que faz churrasco e tem tido muito sucesso? É meio diferente daqueles que fazíamos na tua casa. Hoje, chamamos de churrasco gourmet e o melhor é que ninguém precisa ficar sozinho assando enquanto os outros conversam, eles preparem tudo, do bom e do melhor, e a gente só se diverte. Tenho certeza de que adorarias a experiência, já que meio que lançaste a ideia terceirizando a churrasqueira para teu filho, genro e teus amigos. Chamam a isso de visão de futuro.

Claro que com netos adultos, somamos agregados à família. Tudo gente boa. Imagino tuas conversas com o Herbert sobre política e com o Pedro sobre filmes e livros. Renderiam madrugadas e acaloradas discussões. Melissa e Juliana te encantariam pela beleza e doçura aliadas a uma força feminina que, talvez, te assustaria, mas, com certeza, admirarias. Sendo cinco netos e eu tendo falado de quatro agregados, deves estar pensando que ou eu odeio um ou alguém está solteiro. Fica tranquilo, não odeio ninguém, pelo menos não da família, mas disso falamos em outra hora. Ser solteira é, nestes dias, opção de vida, assim com é não ter filhos. Mais leve, não achas? Todos tentam viver a vida sem se submeter às pressões sociais. O mundo mudou muito nesses trinta anos.

Sabes do teu pavor de conversas ao telefone? Estarias livre delas. Só nos comunicamos por textos, via whatsapp, transmitidos por Internet. Calma. Nem tenta entender, não faz a menor diferença pra ti e te garanto que, mesmo não gostando, sentimos falta da expectativa de uma ligação por telefone.

Voltando à família, tenho o prazer de te informar que és bisavô, e eu, tua garotinha, avó. Ficarias louco por eles. A mais velha, Alice, já tem 9 anos. Uma menina encantadora. Ontem, saí com ela e mais duas amigas da mesma idade. Acreditas que no MARGS elas começaram a discutir sobre a exposição do corpo feminino nas artes? Eu fiquei babando com a conversa delas. Na exposição que havia em outra sala, empacaram. Como crianças de 9 anos estavam com medo das figuras assustadoras que representavam o jardim das emoções secretas do artista. Não é divino acompanhar essa dualidade no crescimento?

A tarde com as meninas me fez lembrar do jogo que propunhas de caçar palavras no dicionário quando estávamos recém alfabetizados. Era um desafio e tornou-se uma memória afetiva. Quem sabe vem de lá minha paixão pelas palavras? Sabes que dei para escrever? Pois é. Queria muito que pudesses ler um dos meus livros ou das minhas crônicas. Confesso que temeria tua crítica. Não por seres duro, mas por eu ser, na tua frente, ainda uma menininha que busca aprovação do pai. Será que a tarde de ontem fará parte da memória afetiva da Alice?

O mais novo, por enquanto, é o Miguel, Mig como chamamos. Uma figura. Super carinhoso, decidido, curioso, sapeca e conversador. É a cara do Eduardo. Terias com ele a experiência de relembrar teus dias e anos com o primeiro neto. E que avô foste! Que linda a relação que vocês tinham. Não ficarias só na rememoração, o Mig não te deixaria viver do passado. Ele é movimento, descoberta, desafio e risadas constantes e, para teu orgulho, colorado. Fico imaginando a coleção de uniformes do Inter que ele ganharia de ti.

Sabe aquele meu ranço com vocês porque paparicavam meus filhos? Peço mil desculpas. Sou igual ou pior do que vocês. Compro chocolates quando eles vêm aqui para casa, faço a comidinha que gostam, deixo os dois dormirem na minha cama e ficamos assistindo um desenho até a hora de dormir, que sempre é um pouco além da de rotina. Minha desculpa, sou vó. Já fui mãe e agora meu papel é outro. Aprendi com vocês a desobedecer aos pais sem causar prejuízos perenes.

Ainda mantemos o que era sagrado para vocês, nos reunimos, não com tanta frequência, e valorizamos estarmos juntos. A diferença é que aprendemos que a vida adulta traz outras escolhas, outras famílias, opções diversas, então estar juntos é decisão e possibilidade, não mais dever que, se questionado, gerava culpa. Claro que não faltam as discussões sobre política. Somos todos cheios de teorias e convicções. Não fazes ideia da tortura que foram os anos entre 2016 e 2022. Sobrevivemos, com sequelas.

A casa que adaptaste para receber a nós, aos teus e aos nossos amigos, hoje é um salão de beleza. Cortaram as árvores, calçaram todo o pátio, transformaram em estacionamento. Uma tristeza. O pior é que isso resume muito do que tem acontecido em Porto Alegre. A cidade mudou muito, nem sempre para melhor.

Não me pergunta sobre os cinemas. Vamos combinar que entre nós esse será um tema de preservação de memória das amplas salas de projeção, das bombonieres, dos baleiros, da permanente com acesso liberado aos cinemas, dos borderôs que cobriam a tua mesa no escritório. Tuas réplicas dos índios do cinema Cacique estão na minha sala e eu amo. É um pouquinho de tudo aquilo que ainda permanece comigo.

Voltando à cidade, na terça-feira, dia 16 teve um temporal assustador. Ventos apavorantes, chuva torrencial, alagamentos, falta de energia elétrica. Sabe toda quela discussão sobre os danos ao meio-ambiente e os riscos para a vida humana? Estão se confirmando. As alterações climáticas são absurdas, não fazes ideia do calor que temos enfrentado. Têm muitos que ainda não acreditam, dizem que é tudo alarmismo de comunistas. Não te espanta. É o mesmo povo que apregoa que a terra é plana, que a ciência não tem valor, que defende a supremacia branca e persegue povos indígenas, negros, mulheres e gays. Até ministra que via Jesus na goiabeira eles tiveram e fizeram dela senadora, pelo voto. E o mais grave, tentaram um golpe, com apoio de parte do Exército, no dia 8 de janeiro de 2023. Tens ideia da arapuca em que nos metemos? Só vivendo para acreditar.

Depois de 5 dias do temporal, ainda há pessoas sem luz nas casas ou nos estabelecimentos comerciais. Inacreditável. Deves estar pensando que a responsabilidade é pela má administração da CEEE por causa da ingerência política. Se o Ed está contigo, deve estar bradando pela privatização. Avisa para ele que foi privatizada e só piorou. Demitiram equipes técnicas, cerca de 1000 profissionais, e respondem ao MPT por mortes acontecidas pelo despreparo e falta de equipamentos de segurança para os prestadores de serviços. Na manhã de terça-feira, o Governador e o chefe da Defesa Civil alertavam, por vídeo, da iminência de um temporal de proporções devastadoras. Só a Equatorial não ficou sabendo dos riscos. Nenhum preparo, nenhum planejamento para trazer de volta a normalidade. Imagina o prejuízo de quem está sem luz há tantos dias. Continuamos priorizando o lucro das empresas à vida da população. Será que isso, um dia, mudará?

O prefeito de Porto Alegre veio a público pedindo empréstimo ou doações de motosserras para acelerar a desobstrução das vias. Um número incontável de árvores caídas. Lembrei quando nos dizia que, se alguém com aparência de dependência em álcool nos pedisse dinheiro para comprar comida, que déssemos o alimento, jamais o dinheiro, pois ele usaria para beber. O Melo adora derrubar árvores ou permitir que sejam derrubadas pelas grandes incorporadoras. Como entregar ao carrasco o instrumento para acabar conosco? A cidade não tem suas árvores podadas ou cuidadas, só eliminadas.

Desculpa tanta informação nada promissoras para aqueles que estão vivos ou nascendo agora. Não quero te preocupar conosco. Agradecemos a possibilidade que sempre nos fornecesse para discutir os problemas, conhecer os fatos, atentar à História e valorizar o ato político de votar. Não fazes ideia da diferença que isso faz nas nossas vidas.

Não sei se tem mais alguém por aí contigo. Nem mesmo sei se existe um “por aí”. Te dizias agnóstico. Eu, mesmo radicalizando, me pego tendo a esperança de um lugar qualquer em que possamos nos encontrar, não em breve. Se estiveres com a mãe e o Edmundo, tranquiliza-os. Mesmo sentindo imensa falta de vocês em nossas vidas, estamos bem e felizes na maior parte do tempo.

Deves estar cansado da minha tagarelice e olha que só dei pinceladas do tanto que queria poder conversar contigo. Faz muita falta a presença da tua mão para segurar a minha quando nenhuma mais estava disponível. Jamais esquecerei do tanto que me acolheste. Tem horas em que a saudade é mais doída, mas passa. É confortador saber que eu tive um verdadeiro pai, com falhas, ausências, mas, essencialmente, um homem digno, justo e amoroso.


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Maria Avelina Fuhro Gastal

E-mail: avelinagastal@hotmail.com

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